quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O sonho acabou *

Obra-prima do norte-americano F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby chega ao mercado em nova tradução e reabre interesse na obra do autor

Scott Fitzgerald saboreava o auge do seu próprio american dream quando entregou ao mundo a história do ambíguo milionário Jay Gatsby. Contista renomado e já autor de dois romances que venderam mais de 60 mil exemplares, número espantoso para a época, desenvolveu uma poética ambivalente como a trajetória dos heróis da década perdida. Na contracorrente de seus contemporâneos, conseguiu estabelecer um projeto de ficção que mesclava, paradoxalmente, temática atenta ao zeitgest borbulhante dos anos 1920 e desprezo pelas modas literárias de então, com investimento autêntico no romantismo do estilo e do olhar.

Relançado com nova tradução, O Grande Gatsby (Companhia das Letras, trad. Vanessa Barbara, 256 páginas) pode ser considerado o ápice da carreira do escritor de Minnesota. O romance, de 1925, reconstrói uma experiência social típica do período, a busca desesperada e encantadora por um lugar ao sol na nação das promessas, ao mesmo tempo que se firma como o ponto alto da literatura do autor. O drama de Jay Gatsby condensa os principais traços da assinatura de Fitzgerald, esboçada desde sua atuação como contista em revistas como Esquire e Vanity Fair: a tematização do sonho americano, vivido sempre à revelia do bom senso; o estilo afetado, último suspiro da prosa romântica; a ética trágica, que dota as personagens de intenso poder de autoaniquilação, aprofundando ainda mais o enredo.

A existência cintilante de Jay Gatsby, um self-made man, chega até o leitor através do seu vizinho, o narrador Nick Carraway, simplório corretor de títulos. Sua fortuna, supostamente originária do tráfico de bebidas durante a lei seca, é vítima de fofocas por todo o país. Gatsby, porém, não se importa. A escalada social ilícita permitiu-lhe usufruir de uma realidade que parecia vetada quando ainda se chamava (apenas) James Gatz. E é graças a ela que organiza suas festas na mansão, por onde desfilam os hits do momento, como os cabelos à la garçon, o jazz dançante e o sexo relativamente livre, protagonizados por heróis que enriqueceram tão subitamente quanto despencarão na miséria (com a crise da bolsa de valores, em 1929).

Atento ao espírito do seu tempo, Scott Fitzgerald oferece ao leitor a sua própria versão de um mundo dilacerado entre esperança econômica e fracasso pessoal, construindo uma geração faminta, que consome (a vida) até a última gota. Assim era Amory Blane, o protagonista endinheirado de Este Lado do Paraíso, de 1920, em busca da sua fatia da terra prometida. A mesma existência regada a álcool e investimentos ousados foi compartilhada pelo herdeiro Anthony Patch e sua bela Gloria, em Belos e Malditos, de 1922. O projeto é consolidado em O Grande Gatsby, onde o autor desnuda uma constelação de mulheres fúteis e executivos sem função, rasgando notas e brindando até o amanhecer na mansão de origem duvidosa.

Enquanto oferece uma versão adorável e consistente daquela geração, Fitzgerald afasta-se do presente ao apostar em um estilo afetado, marcado por frases longas, referências pop e adjetivos cheios de pompa. Rival de Ernest Hemingway, com quem dividia polêmicas literárias, desenvolveu, propositadamente, uma prosa bastante diversa da poética do premiado autor de O Velho e o Mar, caracterizada pela economia de adjetivos e descrições. Desde seus primeiros contos, publicados quando ainda estava na casa dos vinte, Fitzgerald reivindicou o epíteto de último expoente romântico, apelando tanto para a escrita poética quanto para o relato de histórias de amor quase sempre impossíveis e insuperáveis.

Submersos em uma combinação de desamparo e desatino, os casais de Belos e Malditos e Suave é a Noite, de 1934, esboçam as potências de engano e ilusão típicas deste amor fadado à desordem. Em O Grande Gatsby, porém, Scott Fitzgerald oferece uma dimensão ainda mais profunda ao sentimento, construindo uma imagem poderosa para a solidão que assombra seus heróis. Em vez de se esbaldar com os convidados no quintal, como tantos outros apaixonados da obra do autor, Gatsby apenas acompanha o movimento da sacada do quarto, solitário com sua taça de champanhe, à espera da hesitante Dayse, namorada de adolescência que lhe trocou pelo milionário Tom Buchanan. A própria ascensão social de Jay Gatsby curva-se ao romantismo da poética do autor: os acúmulos servem (sobretudo) para atrair sua borboleta do passado aos jardins luxuosos da mansão à beira-mar.

Por fim, Scott Fitzgerald não teria sido um dos nomes fundamentais da literatura ocidental se restringisse sua poética aos (estreitos) limites da apoteose do sonho americano. Sua principal inovação está justamente no destaque de certa ética trágica que costura a existência desregrada e intensa dos protagonistas. Um dos pioneiros na reconstrução, ficcional, da curva trágica entre as aspirações do deslumbre e as derrocadas inevitáveis, transforma melodia em agressão, perspectiva em desalento, horizonte em desencanto, sugerindo um mundo que tende sempre à aniquilação (dos sonhos, das esperanças, do sujeito).

Tema do conto Babilônia Revisitada, a derrocada dos heróis da era do jazz, que a tudo almeja e pouco alcança, é definitiva para a compreensão do projeto do escritor. Se o fracasso parece ser o único fim possível para o desperdício (de dinheiro, de afeto, de expectativa), a trajetória de Gatsby personifica como nenhuma outra a impossibilidade de permanência revelada pelo american dream. Gatsby não acaba esquecido ou louco, como seus irmãos não tão prósperos de Suave é a noite. Tampouco culmina em uma crise criativa, acumulando subfunções incompatíveis com o velho status, como o próprio Fitzgerald. Gatsby morre, assassinado.

Scott Fitzgerald mantém-se como uma das assinaturas mais potentes da literatura ocidental justamente pela monumentalidade do seu projeto artístico, no qual O Grande Gatsby ocupa lugar de destaque. A partir de uma linguagem poética e romântica, contrária aos padrões de então, sua obra reconstrói um frágil castelo de prosperidade, repleto de esperança, fortuna e promessas que se dissipam com os primeiros raios de sol, na ressaca da manhã seguinte.


* Jade Gandra Dutra Martins é pós-doutoranda em Teoria Literária
(publicado originalmente em DC Cultura, 05 de novembro de 2011)

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

feliz 2011 (parte 2)

Porque sala cheia é melhor ainda.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Pena de Ouro **

O maior dramaturgo brasileiro encontrou nas redações de jornais o farto material humano que serviu de matéria-prima para sua obra



POR JADE GANDRA DUTRA MARTINS

No ano de comemoração do centenário de nascimento de Nelson Rodrigues, uma série de exposições, homenagens, eventos e releituras amplia o debate sobre sua obra, atraindo fãs e especialistas. A vasta cobertura tenta contemplar os múltiplos papéis abarcados pelo autor na cultura brasileira do século XX: cronista, contista, romancista, crítico, dramaturgo. Constantemente associado às frases polêmicas e aos dramas rocambolescos sobre traição e desespero, seu legado mais popular, o escritor paira hoje como uma das personagens mais influentes do Brasil moderno. Uma faceta definidora da sua trajetória, porém, ainda segue menosprezada: o jornalista.

Nelson Rodrigues ainda nem sonhava em inventar o teatro brasileiro moderno quando concluiu, com um ponto de exclamação, sua primeira matéria como repórter profissional. Na verdade, jamais assistira a uma peça. Com 13 anos recém-completados, vestia calças curtas, devorava com ansiedade todos os folhetins que lhe caíam em mãos e cismava com o tamanho da própria cabeça – para ele, um cabeção. Pernambucano no registro de identidade, e carioca em todas as outras instâncias, recebeu o primeiro contracheque já na cidade maravilhosa, trabalhando para o pai Mário Rodrigues no jornal da família, o famoso A Manhã.

O matutino inaugurou a trajetória de superlativos que marcaria para sempre o clã dos Rodrigues: havia sido idealizado, concebido, montado e inaugurado em apenas 25 dias. Mário Rodrigues, um bom capitalista, intimou os filhos à labuta. À frente de todo o conteúdo político, local perfeito para alimentar debates intensos e controvérsias variadas, encaminhou Mário Filho à crítica de arte e dividiu a editoria de polícia entre Milton e Nelson. Roberto preferiu o nanquim, e se responsabilizou pelas ilustrações principais das edições. Confirmando a tendência hiperbólica daquela família de 14 filhos, em apenas um ano A Manhã já era o matutino mais vendido do país.

A política editorial era diversificada, atenta às preferências do público: além de publicar diariamente capítulos de romances famosos, como o clássico Crime e Castigo, de Dostoievski, formando uma geração de leitores, A Manhã priorizava matérias policiais, notas sobre suicídio e relatos de dramas passionais que impressionavam os corações sensíveis. Em uma época em que o ofício de jornalista servia como atalho legítimo – e lícito – para se alcançar status social (sim, essa época existiu), os principais periódicos do país descartavam a seriedade das reportagens investigativas ou políticas para mergulhar sem medo na narração de crimes sangrentos e pactos obscuros.

Descrevendo os casos mais chocantes daquele Rio de Janeiro repleto de bondes e piteiras, Nelsinho compensava a pouca experiência abusando de adjetivos poderosos e frases enfeitadas de lirismo. Não havia qualquer preocupação com a verdade, afinal de contas, naqueles tempos, objetividade era quase sempre um recurso exclusivo dos medíocres. Quem dominava de fato a máquina de escrever executava o ofício com o requinte do ficcionista que seleciona a palavra exata para expressar os sentimentos mais subterrâneos. E nas matérias policiais do menino repórter, os fatos eram sempre subordinados à escrita, jamais o contrário – dogma máximo do jornalismo pretensamente idôneo e asséptico que começaria a vigorar no Brasil a partir da segunda metade do século XX.

Era pobre e vivia uma vida miserável.
O ordenado que o emprego lhe proporcionava era insuficiente e não bastava para dar à pobre jovem o mínimo conforto. Sofria as mais pungentes necessidades. Vivia atormentada por cruéis privações.
Entretanto, como era forte e animosa, não se desesperava.
Nos momentos culminantes da desventura, procurava alívio na esperança florida duma vida melhor. Seu espírito era sadio e novo. Não se abatia. Pelo contrário. Quando a desdita golpeava-o, enchia-se de novas forças e da mais robusta mocidade. E as dores de tão habituais e comuns acabaram por revigorá-lo e enrijecê-lo.*

(A Manhã, 19/05/1928)

As primeiras linhas do currículo de Nelson Rodrigues foram preenchidas por três tipos de texto. As grandes matérias, que ocupavam uma página inteira, como o exemplo anterior, eram quase resenhas fantasiosas sobre crimes. Inventava-se muito: detalhes, cenas, pensamentos. O objetivo era arrebatar o leitor, jamais apenas informá-lo sobre os acontecimentos. As do segundo tipo limitavam-se a abordar, com economia, o tema noticiado, sem tecer relações mais profundas do que as já organizadas pelo repórter no ato da escrita. Por último, filé da época, as notas sobre suicídio. Acredite, todos os importantes veículos impressos mantinham então um espaço privilegiado para a exposição dos mais recentes suicídios, contrariando completamente o modelo atual, que pede silêncio, quando não omissão, no tratamento dessas situações.

Maluquices de sucesso


Quando Mário Rodrigues abandonou a casa e a prole no Recife aos cuidados da mulher Maria Esther, sozinha e desempregada, para procurar a sorte no Rio de Janeiro, nada menos do que a capital do Brasil, todo mundo achou que ele estava ficando louco. Pois em 1928, quando decidiu entregar A Manhã para Agripino Nazareth, deixando órfãos milhares de fãs encantados com os famosos textos inflamados do editor, todo mundo teve certeza de que ele estava, sim, completamente maluco.

A reviravolta surpreendente acabou se revelando o caminho mais adequado. Apenas seis meses depois do adeus, Mário Rodrigues fundou um novo jornal, A Crítica, novamente no Rio de Janeiro. Com talento para polemizar debates quentes da política, e cada vez mais ácido com os inúmeros inimigos, o vespertino alcançou a marca de 130 mil exemplares vendidos. E Mário Rodrigues era, novamente, o dono do jornal mais vendido do país, agora com uma nova estrela no currículo: a criação de um modelo renovador que ajudou a construir os tempos de ouro da imprensa brasileira.

A Crítica durou apenas dois anos, até ser empastelado no mesmo dia que Getúlio Vargas tomou a presidência do país, no golpe de estado de 1930. Em seu curto trajeto, porém, o vespertino acumulou feitos dignos de protagonista: solidificou o prestígio do dono, convincente no papel de maior jornalista do seu tempo; promoveu amplos debates sobre a política ditatorial do Brasil da época, expondo opiniões firmes que somente a mais imponente das teimosias seria capaz de produzir; amplificou o poder da crítica de arte, comentando as produções contemporâneas; engrandeceu a cobertura policial, apostando em um misto de literatura e humor, com histórias que encantavam até os leitores mais desconfiados. Como se não bastasse, A Crítica ainda inventou o jornalismo especializado em futebol, inaugurando a era das entrevistas com jogadores e compondo todo um vocabulário próprio, em voga até hoje (a expressão fla-flu, por exemplo, saiu de suas páginas).

A depredação da sede, fruto de rixas explicitadas em editoriais incendiários, liquidou não apenas A Crítica, mas também a última geração romântica da imprensa. A imagem de jornalistas heróis driblando brancos criativos em busca da máxima inspiração foi sendo pouco a pouco substituída pelos profissionais e seus cadernos de fontes exclusivas, para quem valioso mesmo é oferecer notícia em primeira mão, não estilo refinado. No auge desta transformação, os Rodrigues partem para O Globo, dirigido por Roberto Marinho, amigo da família, em 1931. É o primeiro passo para o menino Nelsinho transformar-se, definitivamente, em Nelson Rodrigues.

Nasce um autor

Nelson Rodrigues permaneceu no jornal O Globo durante uma década. É lá que dá seus primeiros passos na cobertura esportiva, elaborando perfis literários com os gigantes da bola, e aprimora a redação das já clássicas matérias policiais, agora um tantinho (só um tantinho) mais econômicas em devaneios e invenções. Já adulto, o jornalista começa a burilar seu estilo, compondo um arsenal de referências que seriam para sempre marcas registradas de sua poética – no teatro, nos contos, nas crônicas, nos folhetins e na vida.

O amor não tem lógica. Escolhida a mulher que lhe faça vibrar o teclado dos nervos, o homem é um autômato e o mundo fica pequeno se lhe falta o convívio caricioso daquela de vago encanto que é a mulher escolhida pelo passional.
Então, a morte é o último apelo.
O amante, de uma união legalizada pelos códigos, ou simplesmente pelo pacto das almas, sempre indissolúveis, procura o último sono como recurso extremo do seu coração agitado, mas não deixa o objeto do seu deslumbramento para a delícia dos outros homens, que ele passa a odiar coletivamente, sem compreender, em seu delírio, a teoria dos filósofos simplistas, que afirmam existirem muitas mulheres, e que todas as mulheres são iguais.*

(O Globo, 12/08/1931)

A reportagem “Eu não disse que havíamos de morrer juntos?” mais parece um ensaio, se comparada ao padrão seco do jornalismo atual. Mas o estilo que Nelson Rodrigues desenvolve nessas folhas policiais é exclusivo, intenso e cheio de particularidades, como as paixões que narrou em seu teatro (atraindo e repelindo o público, na mesma medida). Investe pesado nos adjetivos, característica já da sua escrita de menino; pontua com exclamações e reticências, rejeitando qualquer precaução; tematiza a dor do amor e o desespero da aflição, cantando às almas doentes, de excesso ou de falta; repete as mesmas metáforas de forma obsessiva e contumaz, afinal se assumia, ele próprio, “flor de obsessão”. Não demorou muito para que sua autoria, já identificada por milhares de leitores, atraísse uma nova peripécia, digna de folhetim.

Em O Globo, transformou-se no coringa da redação, escrevendo desde críticas de óperas até histórias infantis – às vezes ainda se passava por tradutor, para garantir um trocado extra. A alta exposição apresentou Nelson Rodrigues ao grupo de intelectuais e artistas da zona sul carioca, onde acumulou algumas polêmicas e muitos amigos famosos. Um deles reconheceu de imediato o seu potencial extraordinário como autor: era Samuel Weiner, jornalista de grande influência na época, getulista de carteirinha e coração. Sem perder tempo, convidou o repórter para compor a equipe daquele que viria a ser o jornal mais moderno até então, o lendário Última Hora.

Nelson Rodrigues já era um dramaturgo controverso, acusado, ao mesmo tempo, de pai do teatro brasileiro moderno e insuperável tarado da dramaturgia nacional. A instável trajetória no tablado rendeu inúmeros textos censurados e, claro, nenhuma moeda no bolso. Sempre acossado pelo imperativo do dinheiro, já que sustentava parte da família Rodrigues após a morte do patriarca – e dinheiro não era o problema para Weiner, famoso por oferecer salários muito acima do mercado –, aceitou a proposta, com o aval do próprio Roberto Marinho, concorrente do novo jornal (em negócios e ideologia), e assinou contrato em 1951.

Se o convite era irrecusável, o projeto pensado por Weiner conseguia ser mais rodrigueano do que o próprio Nelson Rodrigues: uma coluna diária, misto de crônica e conto, baseada em alguma reportagem do jornal, de preferência da editoria policial. Iria se chamar “Atire a primeira pedra”, ideia do chefe, logo refutada pelo autor: por que não “A vida como ela é...”? Ninguém recusou. Como Nelson Rodrigues já era um ficcionista, afinal escrevia teatro e começara a publicar folhetins, a ordem de se inspirar em fatos reais só seria acatada da primeira vez. A partir do segundo texto, seria tudo criação. A mais legítima criação rodrigueana.

“A vida como ela é...”, com reticências mesmo, como convinha à tradição hiperbólica, encantou os leitores desde a primeira maiúscula. Em qualquer bonde em circulação no Rio de Janeiro era possível encontrar passageiros deliciados com as artimanhas da seção. Alguns em lágrimas, outros às gargalhadas. A coluna virou mania nacional, rendendo fama ao autor e suscitando debates em mesas de bar, estádios de futebol, almoços em família, passeios no parque e tardes na praia. Uma combinação rara de ingredientes revela o segredo do sucesso: enredos bombásticos, protagonizados por adúlteros em chamas, quase sempre mulheres; linguagem inovadora, que aposta em simplicidade e coloquialismo sem perder a sofisticação.

As 2 mil colunas, publicadas ao longo de dez anos, são um caldeirão de estilo. Suas frases de efeito conquistaram o público de imediato, sempre pontuadas por exclamações e exageros típicos das paixões desenfreadas. Suas expressões, repetidas ao infinito, reproduziam com graça o linguajar das ruas, e suas personagens se debatiam entre um e outro “bye, bye”, “assim assim”, “batata” e tantos mais. Ainda havia aqueles nomes tão característicos: Gusmão, Glorinha, Palhares, Doutor Borborema – mais tipos do que personagens, até hoje associados à obra do autor. Para completar, vez ou outra o cronista acionava os genes do pai, bradando polêmicas morais (“Nem toda mulher gosta de apanhar, apenas as normais”), políticas (“O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”) e culturais (“Os jovens têm todos os defeitos dos adultos e mais um, a imaturidade”).

Nelson Rodrigues está inteiramente ali: nas mulheres devassas que se entregam ao primeiro desconhecido da esquina; nas vizinhas moralistas sempre à espera do pecado alheio; nas tramas repletas de surpresas, reviravoltas e golpes do destino; na construção criativa e debochada do carioca way of life, uma invenção sua, afinal de contas; na magnitude oferecida ao trivial, movimento pioneiro da ficção brasileira. “A vida como ela é...”, inspirada nas matérias policiais que escreveu desde menino, mudou sua vida profissional, tornou-o um autor consagrado, invadiu seu teatro, ganhou as ruas. E ensinou a nós, brasileiros de carteirinha como ele, que espiar pelo buraco da fechadura é sempre mais gostoso.

* Trechos retirados do livro O baú de Nelson Rodrigues: Os primeiros anos de crítica e reportagem (1928-35), editora Companhia das Letras, 301 páginas.

** Artigo publicado na Revista Lounge deste mês (jul-ago 2011).

sábado, 25 de junho de 2011

Desconstruindo Woody Allen *


* versão do autor

Obra do diretor norte-americano sugere três leituras distintas sobre as aventuras e as paranóias da civilização moderna

Com mais de 40 filmes no currículo, Woody Allen firma-se como uma das mais potentes assinaturas do cinema contemporâneo. Disputado por artistas de renome e com uma coleção de medalhas cults e sucessos de alcance popular, ancora sua poética no debate de dores e aspirações típicas da modernidade. Observada a partir da sua mais recente obra, Meia Noite em Paris (em cartaz nos cinemas do estado), a autoria do roteirista, diretor e ator norte-americano insinua a construção de três grandes palcos para a experiência humana.

O primeiro, presente ao longo de sua trajetória, enfatiza o caráter trágico de situações comuns à atualidade (ainda que desconfortáveis), impondo escolhas extremas e definitivas, que transformam a vida dos (anti-) heróis, expulsando-os da zona de conforto. É o caso de Crimes e Pecados (1989), que conta o drama do médico Judah Rosenthal, disposto a assassinar a amante para livrar sua reputação de interferências negativas. O mal-estar retorna em Match Point (2005), microcosmo do seu "cinema de dilema", no qual o protagonista Chris Wilton vive um pesadelo à Dostoiévski após se envolver com uma aspirante a atriz.

Quando se afasta do trágico, Allen ergue um outro universo, excêntrico agora, que remete à maneira libertária como o espanhol Pedro Almodóvar encara a realidade. Segue, então, o caminho inverso: abandona a tragificação do cotidiano, naturalizando as situações mais exóticas, simplificando descaminhos (aparentemente) chocantes, amplificando o mínimo detalhe que transforma desvio em imperativo. É este Woody Allen subversivo que aparece, por exemplo, em Vicky, Cristina, Barcelona (2008), palco de inusitadas escolhas sociais.

Em ambos os casos, desenvolve uma discussão ética: em última instância, o modo como adaptamos (ou não) nossas buscas e aspirações à sociedade. O que difere um universo do outro é a naturalidade com que suas personagens mais livres sobrevivem aos próprios dilemas e erros. E é justamente esse imperativo (trágico) da decisão que Woody Allen abandona em sua terceira abordagem, revivida em Meia Noite em Paris.

Focado no cômico latente da experiência humana, seu terceiro palco reúne personagens neuróticas e deslocadas, apaixonadas por remédios e fóbicas da vida, e conquistou a intimidade (e as gargalhadas) da plateia. É a maior fase da obra do autor, quantitativamente, rendendo comédias espirituosas que marcaram época, como Bananas (1971), Annie Hall (1977) e Desconstruindo Harry (1997).

Embora tenha fundamentado a carreira do diretor ao longo dos anos, comediante desde os primeiros passos, a ênfase no cômico já não parece capaz de acrescentar grandes feitos à sua obra. Contando a história de um romancista inédito que sonha em viver na década de 20, cenário dos seus ídolos Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Cole Porter, Woody Allen retoma a abordagem superficial, os clichês previsíveis e as lições de moral (cada vez mais explícitas) de dois dos seus filmes mais insossos, Scoop (2006) e O Escorpião de Jade (2001). Repleto de referências, rasas para os conhecedores e obscuras para os desavisados, Meia Noite em Paris constrói uma década de 1920 caricata, com pinceladas apressadas que muitas vezes apenas ratificam certa mitologia, bastante desgastada, sobre os heróis da década perdida.

Jade Gandra Dutra Martins é professora convidada do curso de cinema da UFSC

(texto publicado originalmente no DC Cultura, 25/06/2011)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

(re) conexão *

porque viver de verdade é sempre ao vivo. aiai.

* Por Jonathan Franzen (trad. Augusto Calil, publicado no Caderno Link).

"Falando numa perspectiva mais geral, o objetivo definitivo da tecnologia, a teleologia da techné, é substituir um mundo natural indiferente a nossos desejos – um mundo de furacões e dificuldades e corações partíveis, um mundo de resistência – por outro mundo que responda tão bem a nossos desejos a ponto de ser, com efeito, uma mera extensão do ser. Permita-me sugerir, finalmente, que o mundo do tecnoconsumismo é, portanto, incomodado pelo amor verdadeiro, restando-lhe como única escolha responder perturbando o amor.
(...)
Um fenômeno relacionado a esse é a transformação do verbo “curtir” (“like”, em inglês) que, graças ao Facebook, deixa de ser um estado de espírito e passa a ser um ato que desempenhamos com o mouse – deixa de ser um sentimento para virar uma opção de consumo. E curtir é, no geral, o substituto que a cultura comercial oferece para o ato de amar. A característica mais notável de todos os produtos de consumo – e principalmente dos dispositivos eletrônicos e aplicativos – é o fato de terem sido projetados para serem imensamente curtíveis. Esta é, na verdade, a definição de um produto de consumo, em contraste com o produto que é apenas aquilo que é e cujos fabricantes não estão concentrados na possibilidade de o curtirmos ou não.
(...)
O simples fato é que a tentativa de ser perfeitamente curtível é incompatível com os relacionamentos amorosos. Mais cedo ou mais tarde, por exemplo, você se verá numa briga horrível, aos berros, e ouvirá saindo de sua boca palavras que você mesmo não curte nem um pouco, coisas que estilhaçam sua autoimagem de pessoa justa, gentil, bacana, atraente, controlada, divertida e curtível. Alguma coisa mais real do que a curtibilidade surgiu de você e de repente você se vê levando uma vida real.
(...)
Subitamente existe uma escolha de verdade a ser feita – não uma falsa escolha de consumidor entre BlackBerry e iPhone, e sim uma pergunta: Será que eu amo esta pessoa? E, para o outro, será que esta pessoa me ama?Não existe a possibilidade de curtir cada partícula da personalidade de uma pessoa real. É por isso que um mundo de curtição acaba se revelando uma mentira. Mas é possível pensar na ideia de amar cada partícula de uma determinada pessoa. E é por isso que o amor representa tamanha ameaça existencial à ordem tecnoconsumista: ele denuncia a mentira.
Isso não equivale a dizer que o amor envolve apenas as brigas. O amor é questão de empatia ilimitada, nascida de uma revelação feita pelo coração mostrando que outra pessoa é tão real quanto você. E é por isso que o amor, ao menos no meu entendimento, é sempre específico. Tentar amar a toda a humanidade pode ser um empreendimento digno, mas, de um jeito engraçado, isso mantém o foco no eu, no bem estar moral ou espiritual do eu. Ao passo que, para amar uma pessoa específica e identificar-se com as lutas dela como se fossem as suas, é preciso abrir mão de parte de si.
Neste caso, o grande risco envolvido é, sem dúvida, a rejeição. Todos nós podemos suportar momentos em que não somos curtidos, pois existe uma gama virtualmente infinita de curtidores em potencial. Mas expor a totalidade do seu eu, e não apenas a superfície curtível, e com isto ser rejeitado, é algo que pode se revelar insuportavelmente doloroso. A perspectiva geral da dor, a dor da perda, da separação, da morte, é o que torna tão tentadora a ideia de evitar o amor e permanecer em segurança no mundo do curtir.
Ainda assim, a dor machuca, mas não mata. Quando levamos em consideração a alternativa – um sonho anestesiado de autossuficiência, incentivado e aprovado pela tecnologia – a dor emerge como produto natural e indicador natural de que estamos vivos num mundo resistente. Levar uma vida indolor equivale a não viver. Até dizer a si mesmo, “Ah, vou deixar para depois esta história de amor e de dor, talvez para depois dos 30 anos” é como resignar-se a passar 10 anos simplesmente ocupando espaço no planeta e consumindo seus recursos. Resignar-se a ser um consumidor (palavra que emprego no seu sentido mais pejorativo).
(...)

"Curtir é covardia", na íntegra, aqui.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

despertando

"O rapaz continuou a narração: ele compreendeu de imediato a rasteira do destino; ela demorou, demora ainda. As pistas da exclusividade já haviam sido fornecidas, inclusive, em outras ocasiões, algumas nem tão agradáveis. Se um dia ele se casasse, lembrou a famosa frase, se um dia abraçasse aquele ato impraticável, e riu, seria apenas com ela, Nina – e ele sabia desde menino. Se alguém ainda pudesse arrancá-la daquela dor e daquele peso, só podia ser ele, Tom - e ela ainda custava a aceitar a oferta. Mesmo tendo dinamitado o futuro duvidando dos antigos acertos do amor, e acreditando naquela sucessão de erros fantasiados de poesia, ainda assim a vida esticara o pé e pimba. Mais maduros, jamais repetiriam o mesmo erro. Porque a vida sempre seria maior, superior a todas as falsas razões; porque o tempo trabalha a favor dos fortes, os raros que torcem e vibram e lutam de verdade, os únicos capazes de desprezar as miudezas, donos de almas que transbordam. Já pisavam a primeira primavera só de margaridas. E logo reduziriam, enfim, aquela penca de achismos, dela e dele, a minúsculos vermes rastejando diante do resto gigante. O resto gigante, maravilhoso, estapafúrdio; o supérfluo indispensável. Porque tentar minar aquele amor era uma luta de formigas e elefantes, e eles eram os elefantes. Porque, pela primeira vez, ele não tinha mais medo algum da esperança. Porque ninguém, absolutamente ninguém, atravessa sete anos, onze meses e 23 dias com uma dor no coração sem procurar a cura no lugar certo."


(velhas letrinhas em...)

terça-feira, 7 de junho de 2011

''A obra de arte tem de ser imperfeita'' *

* Por Arnaldo Jabor

Outro dia, o Nelson Rodrigues baixou em mim. De vez em quando, eu o psicografo. É impressionante como escrevo rápido quando o espírito de Nelson me toma. Escrevo com a liberdade de não ser "eu". Talvez seja por isso que F. Pessoa inventou heterônimos para se sentir livre da cangalha do "eu".
Muitos jovens me perguntam: "Afinal, quem foi o Nelson?"
Não sabem direito. Ficou apenas a vaga lenda de "pornográfico" ou até de "fascista" por ter puxado o saco do ditador Médici (lembram?) para tirar seu filho da prisão. Não conseguiu, mas ganhou a pecha "de direita" por ter criticado futuros mensaleiros e pelegos, os "marxistas de galinheiro", como ele os chamava, pois intuiu claramente, na época, que a ideologia que "absolve e justifica os canalhas" era apenas o ópio dos intelectuais.
Eu mesmo sofri por causa dele. Em 1973, ousei filmar Toda Nudez Será Castigada e dei uma entrevista na Veja em que dizia que "fascismo é amplo: existe fascista de direita e de esquerda também". Pra quê? Os patrulheiros ideológicos mandaram um manifesto ao Jornal do Brasil, onde me esculhambavam indiretamente, dizendo que o sucesso imenso que o filme fazia "não era a missão política do cinema novo". Foi das grandes dores que senti, pois até amigos assinaram o maldito texto, que só não foi publicado porque, um dia antes, os generais tiraram o filme de cartaz, com soldados de metralhadora, levando as cópias dos cinemas porque, dizia o chefe da Censura: "Ele faz apologia do homossexualismo..."
Aí, meus "amigos" comunas desistiram do texto "para não dar razão ao inimigo principal", que era a ditadura. Eu e Nelson éramos "inimigos secundários", para usar a língua de Mao Tsé-tung. Isso é verdade e nunca contei aqui. Doeu, mas já passou.
Aí, o filme voltou a cartaz porque ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim; os generais ficaram com medo da repercussão internacional (imensa) e liberaram meu filme, baseado numa peça do "fascista pornô". Mas a importância de Nelson continua subestimada.
Hoje, a "pornopolítica" tomou conta de tudo e Nelson é que tem fama de "pornográfico" - logo quem: um moralista que corava diante de um palavrão. Nelson é muito mais. Filho do jornalismo policial, formado nas delegacias sórdidas, vendo cadáveres de negros plásticos, metido no cotidiano "marrom" do jornal do pai, Nelson flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa cara, e que ninguém via.
Consideram-no o maior dramaturgo do País, sem dúvida, mas não o colocam no pódio da literatura culta, ao lado de gente como Guimarães Rosa, por exemplo, que o irritava muito: "Jabor, diga-me pelo amor de Deus, qual a profundidade da frase "Viver é muito perigoso"?" Ou: "A gente morre para provar que viveu...?" Nelson implicava com a pose do Rosa.
Uma vez, ele me disse ao telefone que o "problema da literatura nacional é que nenhum escritor sabe bater um escanteio". É luminoso.
Outra vez, ele falou: "Se Deus me perguntar se eu fiz alguma coisa que preste na vida, eu responderei a Deus: "Sim, Senhor, eu inventei o óbvio!""
Sua literatura nos ensina o óbvio e isto é muito profundo numa literatura eivada de engajamentos "corretos" ou de intenções formais rocambolescas. Gilberto Freyre sacou sua "superficialidade profunda", assim como André Maurois entendeu que a genialidade de Proust era justamente "a épica das irrelevâncias..." E isto é muito saudável, num país onde ninguém escreve um bilhete sem buscar a eternidade. Nelson é um escritor contemporâneo.
Até hoje, muita gente não entendeu que sua grandeza está justamente na sincronia com os detritos do cotidiano. A faxina que Nelson fez na prosa é semelhante à que João Cabral fez na poesia.
Nelson baniu as metáforas a pontapés "como ratazanas grávidas" e criou o que podemos chamar de antimetáforas feitas de banalidades condensadas. Suas comparações sempre nos remetem a um "mais concreto". Shakespeare tinha isso, Cervantes, também. E algumas crônicas de Nelson são superiores a muitas peças.
Suas frases famosas jamais aspiravam ao "sublime": "o torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado", "a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil", "em seu ódio ele dava arrancos de cachorro atropelado", "seu peito se encheu de heroísmo como anúncio de fortificante", "a bola seguia Didi com a fidelidade de uma cadelinha ao seu dono", "a virtude é bonita, mas exala um tédio homicida; não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera", "o sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura", "somos uns Narcisos às avessas que cuspimos na própria imagem".
Ele me dava lições de arte e literatura: "Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. A partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão elitista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões. E aí vem a grande verdade: "A obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita". Isso. Contemporâneo e minimalista, via, como Oswald, que a poesia está nos fatos, no vatapá no outro e na dança - "o que estraga a obra de arte é a unidade".
A lição política de Nelson é: o Brasil não se salvará com planos messiânicos ou ideias gerais de "epopeias de Cecil B. de Mille", sejam elas epopeias operárias ou epopeias neoliberais.
Nelson, sem cultura política nenhuma, profetizou que os atos "indutivos", as providências parciais eram muito mais importantes que generalidades utópicas e "dedutivas". O "óbvio ululante" é limpar a casa e cuidar do detalhe, do enxugamento do Estado, "chupando a carótida dos chefes das estatais como tangerinas" quando se mostrarem ladrões ou favorecendo correligionários, como vemos todo dia.
Nossa opinião pública está muito mais informada hoje, mas ainda é precária e desinformada. Como ele dizia: "Consciência social de brasileiro é medo da polícia". Até hoje.


(Publicado em O Estado de São Paulo, 07/06/2011)

sexta-feira, 3 de junho de 2011

a vitória do oxigênio

Tom compreendeu cada uma das palavras escorregadias, assim como aceitou com tranqüilidade as lágrimas presas em esconderijos pela casa. Alguns muitos tempos atrás, Nina o enxergara da profundidade à superfície e mesmo assim decidira permanecer; aquela era a hora, então, de retribuir a delicadeza com que ela tratara todos os dramas e ensaios até a súbita explosão da gota d'água, justamente onde as névoas se concentravam. Quando as lágrimas se tornaram maiores e mais volumosas, exibidas num excesso na cama, resistentes a soluços e fungadas, levantou a namorada com carinho e olhou-a com toda calma do mundo. Nunca a vira chorar, disse. Nunca a vira chorar embora tanto já tivesse visto na vida, e tantas coisas que motivariam o choro até mesmo dos mais nobres, mais capazes, mais corajosos, continuou. Os raros - sussurrou. Era verdade, ela pensou; diante do choque das lágrimas inéditas daquele jantar de quase noivado, ignorou sua própria incapacidade diante dele. Era saudade do pai, mentiu, lamentando em seguida: continuava se sentindo incapaz de dizer a verdade. Já começava a delimitar, no entanto, os contornos daquele fato imprevisto, desprezado por ambos em suas ansiedades: eles não eram mais os mesmos. E talvez algo ali já fosse irrecuperável.


(velhas letrinhas blá blá blá...)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Paraíso perdido *

Prestes a completar 90 anos, romance de estreia de Scott Fitzgerald reconstrói a esperança e o fracasso de uma geração desiludida


Amory Blane cresceu entre taças reluzentes e festas glamourosas. Seleciona amigos em confrarias restritas à alta roda, debate assuntos polêmicos com a arrogância incansável dos imaturos, esnoba escolas exclusivas e faculdades que formaram presidentes. Retrato de uma geração deslumbrada com as infinitas possibilidades de ascensão social, não perde a fé no sonho americano e, sobretudo, no próprio futuro.

Este Lado do Paraíso (Cosac Naify, 335 pgs., R$ 69), porém, não se limita (apenas) à elaboração de personagens desesperadas por desfrutar a vida até a última gota – de álcool e prazer. Oscilando entre a euforia e o desespero, refaz a curva trágica de madrugadas plenas de dissipação, típicas da era do jazz, que culminam, sempre, em manhãs violadas por ressacas grandiosas.

Repleto de expectativas borbulhantes, o jovem Amory acaba vítima dos próprios delírios de ascensão. O excesso de ofertas e autoconfiança torna-o incapaz de aprofundar e amadurecer qualquer experiência, minando o futuro glorioso. Seu fim é o destino de boa parte da geração que viveu aqueles tempos de fortuna e modernização: pobre e solitário, sem diploma, sem futuro e com o frigobar vazio.

Sucesso absoluto de crítica e público, Este Lado do Paraíso vendeu inacreditáveis 50 mil exemplares, definiu uma época, disseminou gírias e ainda transformou seu autor em pop star. Com os bolsos cheios de dólares, Fitzgerald conseguiu casar-se com uma excêntrica dama da alta sociedade, Zelda, alcançou as colunas sociais e conquistou a tão desejada elite norte-americana. Era o passaporte que faltava para encarnar, ele mesmo, a falência do sonho americano tão bem retratada em sua ficção – morreu aos 44 anos pobre e solitário, alcoólatra e esquecido, como suas tristes personagens.

Mais do que contar a história do menino que prometia conseguir se tornar tudo aquilo que almejasse, analogia da prosperidade da nação americana antes da quebra da Bolsa de Valores de 1929, Fitzgerald evoca a decadência de uma geração que acorda miserável do sonho dourado – sem dinheiro e sem valores. A transformação das infinitas promessas da “nação mais poderosa do mundo” em uma espécie de desespero que tudo congela não apenas inaugura a ficção do autor como permanece como elemento central de sua poética.

Se prosseguiu abordando o tema durante toda a sua trajetória ficcional, como em Belos e Malditos (1922) e Suave É a Noite (1934), desenvolvendo um estilo mais amadurecido, embora com o mesmo frescor, é em O Grande Gatsby (1925) que explora os desdobramentos mais cruéis da escalada social. Seu herói, Jay Gatsby, mergulha tão fundo na ilusão do sonho americano que chega a morrer por ela. No fim das contas, este parece ser um chamado legítimo entre os protagonistas do autor, porta-voz da “geração perdida” da literatura americana. Afinal, como repete Amory Blane, “não quero repetir minha inocência. Quero ter o prazer de voltar a perdê-la”.


As linhas da decadência

Estreia de Scott Fitzgerald no universo dos romances, Este lado do paraíso inaugura também um olhar exclusivo sobre a derrocada dos heróis da era do jazz, assinatura de sua poética. Os descaminhos da desilusão americana estão presentes em todos os romances do autor, retratados sempre com frescor e profundidade.

Belos e Malditos (1922) – Segunda obra, conta a vida cintilante e irresponsável de Anthony Patch, herdeiro milionário formado em Harvard, e sua bela e fútil Gloria. A narrativa amadurece muitos temas da estreia: ascensão social súbita, desperdícios em noitadas intermináveis, paraísos artificiais, bebedeiras infindáveis, sonhos despedaçados e muitas, incontáveis extravagâncias.

O Grande Gatsby (1925) – Considerado por muitos a obra-prima do autor, condensa na trajetória duvidosa de Jay Gatsby a grande curva trágica da geração perdida. De garoto pobre a contrabandeador da lei seca, o protagonista arma-se de dinheiro e mistério para reconquistar a hesitante Dayse, namorada de adolescência que lhe trocou pelo milionário Tom Buchanan.

Suave é a noite (1934) – Tristemente autobiográfico, narra a ascensão e derrocada do alcoólatra Dick Diver, espécie de prodígio maldito, que abandona a medicina por uma vida de dissipação ao lado da mulher Nicole Diver, louca e milionária – livremente inspirada em sua mulher Zelda Fitzgerald. O autor levou oito anos para conseguir concluir o romance, dividido entre a ficção e constantes rehabs para amenizar o alcoolismo.

O Último Magnata (1941) – Obra póstuma, alimentada pelas derradeiras experiências profissionais do autor, como roteirista de cinema. A história persegue a trajetória do produtor Monroe Stahr (baseado em Irving Thalberg, antigo chefe da MGM), focalizando a encantadora Hollywood da década de 30. Fitzgerald morreu subitamente, de ataque cardíaco, enquanto ainda trabalhava nos últimos capítulos. A obra foi finalizada pelo seu amigo e editor, Edmund Wilson.


(texto originalmente publicado no DC Cultura, 22/05/2011)

quinta-feira, 12 de maio de 2011

quase só medo

Olhou para a bela casa azulejada e não conteve o suspiro: alguns sentimentos jamais deveriam passar da esperança à realidade. Ainda havia uma dor miserável ali, impura e resistente, capaz de enferrujar as expectativas mais legítimas. O mesmo medo paralisante das outras duas tentativas, impróprias, rasgadas, inacabadas. Mas sempre lhes fora mais conveniente engrossar os escudos e bloquear as fechaduras. Evitar o futuro com corridas estapafúrdias, oferecer as mãos cheia de limo para escapar do coração. Assumir o palhaço trágico, transformando em blague experiências indizíveis, compartilhar a graça para não sufocar de nada, velhos senhores de trevas tão caprichosas. Olhou a bela casa azulejada e não conteve a coragem: tentaria de verdade aquela vez. E se estavam ali, remodelados como em sonhos distantes, é porque precisavam vestir aquelas plumas.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

c'est interdit penser à autre chose

Lado a lado, e com as taças já pela metade, tentaram retomar assuntos abandonados na noite anterior. Tom estava seguro, sem dúvida, mas em nenhum momento recorreu à violência enrustida com que conduzia com destreza as conversas de juventude. Mesmo mais suavizado, colorido agora nas tintas do sépia, constrangia com o oferecimento daquele vasto cardápio de confiança, exatamente como ela o violentara no último jantar, pela tranqüilidade com que atravessara cada dúvida no sofisticado restaurante. Nina, como ela própria já imaginava, não conseguia mais atordoá-lo com assertivas, muito menos extorquir as palavras certas com pulso firme e decidido; a noite passada fora demasiadamente promissora para que brincasse de exercitar valentias. Era como se tudo tivesse adquirido certa gravidade, mais uma carga de definitivo, e não gostaria de autorizar qualquer borrão às linhas daquela reescrita. Era difícil para ambos aceitar tamanha entrega, um diante do outro, driblando dores e humilhações, camuflando em palavras bem escolhidas tudo o que não conseguiam iluminar, brincando de voltar ao passado quando desejavam apenas revolver o futuro. Imaginavam-se, no entanto, cúmplices também naquilo, e isso tornava o sofrimento um pouco mais leve.

terça-feira, 10 de maio de 2011

permanências

Degustaram a sobremesa envolvidos num silêncio equilibrado entre a esperança e o sossego; como nos velhos tempos, bastavam-se, e compreendiam-se, e distraíam-se, apenas. Ao fim da refeição, sabiam ambos, a mais significativa das intimidades já fora resgatada, e nem todas as famílias, conversas e cidades, e nem todos os dias, luas e passados conseguiriam explicar a facilidade da restauração. Para Nina, Tom soava menos selvagem, menos seguro, muito mais delicado, e era bom encontrá-lo assim. Menos dramático; mais atencioso e verdadeiro. A Tom, Nina parecia mais madura, mais calma, muito menos convicta, novos contornos capazes de aproximá-los ainda mais, como testemunhas da vida um do outro, do que quiseram ser e não conseguiram, do que desejaram ter e não encontraram à venda, do que sonharam se transformar e enfim tiveram coragem para se tornar. Já não possuíam qualquer dúvida sobre o próximo encontro, seria o mais breve possível, como escancarou o convite: almoçariam juntos no dia seguinte? Claro, e Nina não conteve o sorriso largo, enquanto mastigava a última raspa de chocolate do doce. O excesso de “experiência concentrada” até a turma percebia, ele continuou, o que desejava saber, no entanto, talvez confirmasse a única sentença imune às tempestades do verão: alguém depois dele lhe jurara não morrer?

segunda-feira, 9 de maio de 2011

canções de outono

"Olhou bem para o pai, parado em sua frente, e reparou triste naquele perfil bonito que agora apenas insinuava o retrato de outrora. Viu-o cheio de falhas, na memória, na lógica, nos sentimentos, escondido por trás de um monte de títulos que afinal não serviram para muita coisa. Não podia mais obtê-los, já não podia sequer usufruir os já existentes. Tão inteligente e tão respeitado; tão incompreensível em sua doença inédita. Pensou pela primeira vez em desistir; a distância metafórica do pai lhe dizia que chegara longe demais com aquela visita forçada, e era realmente muito difícil caminhar por entre as curvas de uma loucura tão estranhamente lúcida como aquela. Sentia-se sem munição, a não ser aquelas que vêm do coração, e estas, geralmente, atingem sempre alvos interditados ou impróprios. Baixou a cabeça, deixando escorrer o lenço cor-de-rosa, e cobriu os olhos com a mão. Só conseguiu sair de si ao observá-lo devolvendo o lenço ao seu cabelo agora trançado, enquanto ouvia, baixinho em seu ouvido: então conseguira encontrar alguém à sua altura? Encarou-o, mais esperançosa do que nunca, e abraçou-se nele, deixando-se morrer ali, naquele instante. Teria dado um pedaço de seu talento, o mais especial, para escutar do pai qualquer resto de voz àquela tarde. Enlaçaram-se uma outra vez, e ela só aceitou deixar o quarto após ouvir numa segunda frase mal costurada que ele faria de tudo para melhorar o quanto antes. Ela precisava dele, afirmou, muito mais do que ele dela, pensou, sozinha. Antes de fechar a porta, devagarzinho, com cuidado, ainda observou o arrastar violento das cortinas, vedando novamente o quarto de qualquer contato externo".



(velhas letrinhas em correção)

sexta-feira, 8 de abril de 2011

dupla comemoração

Um dos meus romances de cabeceira completa 90 anos agora:

"Sabia que deus não existia em seu coração; suas ideias ainda eram tumultuadas; a dor estava sempre presente; a nostalgia da juventude perdida não o abandonava. Porém, as águas da desilusão haviam depositado um sedimento em sua alma, a responsabilidade e o amor pela vida, o ligeiro estímulo de antigas ambições e sonhos não realizados".
(Este lado do paraíso, de Scott Fitzgerald)


E um dos meus mais novos livros de cabeceira acaba de despontar na aldeia global. :o)

quarta-feira, 30 de março de 2011

saber, viver.

"O saber sucumbir sem evadir-se do perigo de viver singulariza o morrer do homem que perece, mas não se perde nem se vai em vão".

Ronaldes de Melo e Souza

sexta-feira, 25 de março de 2011

a esperança em retrospecto

"Não quero repetir minha inocência. Quero ter o prazer de voltar a perdê-la".

(Este lado do paraíso, Scott Fitzgerald)

segunda-feira, 21 de março de 2011

meus mais - drops

"Como quando se tira um vestido velho do baú, um vestido que não é para usar, só para olhar. Só para ver como ele era. Depois a gente dobra de novo e guarda mas não se cogita em jogar fora ou dar. Acho que saudade é isso".

(As meninas, Lygia Fagundes Telles)

sexta-feira, 18 de março de 2011

inspirações, poema de fim de semana

Nunca compreenderam o fracasso. Ele estacionou apressado, confuso ainda, gravata preta desafiando o vento sul. Ela nunca mais seria a mesma: missão, cabelos, coração. Ele jamais soube, mas algo imenso ruíra três semanas antes daquele aperto de mão desengonçado. Ouviu as palavras decididas, sempre tão bem urdidas, e sentiu algo entre o interesse e a desconfiança. Fernando Pessoa? Mas ela não conhecia a Tabacaria do outro lado da rua e recusou três vezes. Aceitou as 300 seguintes. Jamais tanto sucesso.


TABACARIA
(Álvaro de Campos/Fernando Pessoa)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
- Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê
-Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeiraTalvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

quinta-feira, 17 de março de 2011

feliz 2011

Porque alunos novos é sempre vida nova. Ainda mais na UFSC.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Às margens do tempo

Obra de Faulkner narra decadência de família presa entre a memória e a ausência

Um passado opressivo que afasta qualquer possibilidade de horizonte. Uma família destruída pelo peso das lembranças, à espera da extinção redentora. Um presente pálido, sem ação e sem futuro, conduzido por heróis falíveis que jamais encontraram razões para suas lutas. Uma linhagem ameaçada pelo tempo, um tempo cruel e misterioso, que corrói a experiência humana como uma ferrugem faminta.

Terceiro romance do norte-americano William Faulkner, o recém-lançado Sartoris (Cosac Naify, 416 pgs.), de 1929, desbrava os infortúnios do clã homônimo, imobilizado entre os grandes feitos do Coronel John Sartoris, morto na Guerra da Secessão, e a permanência em um mundo herdado, em constante decomposição. Estreia do condado fictício de Yoknapatawpha, no Mississipi, o livro esboça boa parte do estilo que marcaria a poética do autor, e que lhe renderia o Prêmio Nobel de Literatura, em 1949.

O protagonista Bayard Velho, nascido “tarde demais para uma guerra e cedo demais para a guerra seguinte”, compartilha com o filho de mesmo nome velhos traumas – ambos perderam irmãos em combate. Tia Jenny, a irmã mais nova do coronel, vela os tempos de outrora, valorizando o sentido do passado e mitificando a sucessiva marca trágica dos homens da família. Nesta existência voltada para o que já foi, ignora o propósito das novas gerações: “Eles não são os meus Sartoris”.

Como em toda a ficção do autor, os homens daqui adquirem identidade a partir da soma dos seus infortúnios - por isso a impossibilidade de libertação dos próprios fantasmas. Há sempre algo maior que assombra o indivíduo, impedindo a afirmação do presente e guiando a existência como uma ampulheta esburacada, resquício das incertezas alardeadas em anos de Guerra Civil, na construção do ethos sulista.

O peso da experiência passada, com seus ferimentos e seu sentido indubitável e majestoso, verga a mansão de origem escravocrata da família, impondo ações raquíticas e intensa memória. Quase não há atividade: parte porque a monumentalidade da escrita do autor parece se bastar, parte porque a vida é escassa em existências orientadas pelo passado. Graças a esta cortina de fumaça, as circunstâncias preponderam sobre os fatos e os grandes atos das personagens são apenas sugeridos, abrindo o palco para suas consequências, sobretudo as internas.

Tudo aqui é desespero, culpa, prisão. Não à toa, Bayard busca dia após dia o acidente que irá redimi-lo de uma existência inoperante, seja pelo excesso de bebida ou de velocidade. Contando a sua primeira saga em Yoknapatawpha, Sartoris percorre conceitos que atravessam a ficção de William Faulkner como um todo: heroísmo e resistência, habilidade e desistência, impossibilidade e permanência.

Ao mesmo tempo que articula uma série de procedimentos modernistas que viriam consagrar a obra do escritor, sobretudo após O som e a fúria, também escrito em 1929, constrói um universo: levanta, pela primeira vez, a poeira incômoda e eterna das estradas do sul.

Jade Gandra Dutra Martins é pós-doutoranda em Teoria Literária.

(Texto originalmente publicado no DC Cultura / Diário Catarinense, 12/03/2011)

quinta-feira, 10 de março de 2011

tempestade líquida

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.

* * *

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.

* * *

E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

* * *

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.

(Alcóolicas, Hilda Hilst)

quinta-feira, 3 de março de 2011

gemas



"Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera".

quarta-feira, 2 de março de 2011

orações de mississipi

De tantos em tantos dias, após um pedido da srta. Jenny, ela vinha, sentava-se ao lado da cama e lia para ele. Ele não dava a menor importância aos livros; e era quase certo que jamais lera algo por iniciativa própria, mas ali ficava imóvel em seu gesso enquanto a grave voz de contralto dela erguia-se incessante no quarto silencioso. Às vezes ele tentava conversar, mas ela ignorava esses avanços e continuava a ler; se ele persistia, ela simplesmente se virava e o deixava. Por isso logo ele aprendeu a dissimular, em geral com os olhos fechados, percorrendo sozinho as regiões sombrias e estéreis de seu desespero, enquanto a voz dela deslizava sem parar acima dos ruídos mais distantes que chegavam até eles - a srta. Jenny repreendendo Isom ou Simon no térreo ou no jardim, o pipilar dos passarinhos na árvore perto da janela, o incessante gemido da bomba d'água além do estábulo. Por vezes ela parava de ler e o contemplava e descobria que ele estava dormindo tranquilamente.

(Sartoris, William Faulkner)

terça-feira, 1 de março de 2011

a arte da vida

"Afinal, o que há de errado com a felicidade?"

Lições do contemporâneo:

"A característica quase universal da vida moderna: a tensão perpétua entre dois valores, segurança e liberdade, igualmente cobiçados e indispensáveis a uma vida feliz - mas, que pena, assustadoramente difíceis de conciliar e usufruir em conjunto".

"Parece que hoje, embora ainda se possa sonhar em descrever antecipadamente um cenário para toda a vida, e mesmo trabalhar arduamente para transformar esse sonho em realidade, apegar-se a qualquer cenário, mesmo ao do seu próprio sonho, é assunto arriscado e pode mostrar-se suicida".

"Há uma perturbadora carência de pontos de orientação firmes e fidedignos, assim como de guias confiáveis. Essa carência coincide (de modo paradoxal, mas absolutamente não acidental) com uma proliferação inédita de sugestões tentadoras e ofertas de orientação atraentes, com uma onda sempre crescente de manuais e hordas cada vez mais amplas de consultores - tornando, contudo, ainda mais confusa a tarefa de atravessar a mata densa de proposições equivocadas ou simplesmente falsas para encontrar uma orientação capaz de realizar sua promessa".

Sussurros tão modernos do passado:

"Eu ando entre essas pessoas e mantenho os olhos abertos... Elas me bicam porque lhes digo: 'Para as pessoas pequenas são necessárias pequenas virtudes - e porque é difícil para mim entender que as pessoas pequenas são necessárias!'
Eu ando entre essas pessoas e mantenho os olhos abertos: elas ficam menores e estão ficando menores ainda: e a causa é sua doutrina da felicidade e da virtude...
Fundamentalmente, desejam uma coisa acima de tudo: que ninguém venha a lhes fazer mal. Assim tiram vantagem de todos e fazem bem a todos.
Isso, porém, é covardia: embora seja chamado de 'virtude'.
São espertos, suas virtudes têm dedos espertos, mas não têm pulsos, seus dedos não sabem entrelaçar-se em pulsos...
Isso, porém, é mediocridade: embora seja chamado de moderação.
Vocês ficarão cada vez menores, pessoas pequenas! Vocês vão esfarelar, pessoas seguras! Vocês ainda perecerão - por suas muitas pequenas virtudes, por suas muitas pequenas omissões, por suas muitas pequenas submissões".

Ecos de Zaratustra, o super-herói de Nietzsche, ele próprio o super-herói da pós-modernidade. Ecos de Zygmunt Bauman, o filósofo polonês que questiona a legitimidade dos horizontes de felicidade no mundo líquido. Se a liberdade de autocriação permanece irrealizada, simulacro ainda, em meio às sugestões do excesso, o segredo parece simples: "Entre a aceitação resignada e a decisão corajosa de desafiar a força das circunstâncias coloca-se o caráter".
Honra, em última instância.
Tudo isso e muito mais está em A arte da vida: consolo para os fortes, vitamina para os fracos.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Mãos de pedreiro, pés de bailarina

Alice descobrira muito cedo a importância de conseguir correr sem tropeçar. Como toda arte legítima, caprichosa e comovente, o galope exigia técnicas próprias: seguir adiante sem pensar na paisagem abandonada, manter os olhos imunes ao brilho dos arredores, graduar a velocidade para evitar o esgotamento, fixar um ponto qualquer e persegui-lo com suor, ainda que jamais ultrapasse a leviandade dos esboços. A prática enchia seus pés de calos, sem dúvida. Mas era o único antídoto para o coração equilibrista.

Antônio descobrira tarde demais que não concluiria a vida sem sujar as mãos. Se a bondade não servia sequer para calar as vozes, os reparos pareciam impossíveis sem alguma dose de veneno. O susto trouxe uma coleção de dúvidas indigestas, vagas como promessas de verão. De posse da revelação, arranhou, descascou, desabou, cimentou. Não demorou a experimentar a mágica dos nascimentos: maturidade, bravura, coragem, ainda alguma bondade. Reconheceu a verdade. Em terra de cego, quem tem um olho é monstro, não rei.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

as canções e os cálices

"Em silêncio, Tom serviu a escritora de uma nova taça de vinho tinto, amparando o infantil tremor na precisão de movimentos discretos e ensaiados. Nina sempre encontrara nos seus gestos algo incompreensível, certo sentimento contraditório, mestiço e persistente, capaz de ignorar os bloqueios do tempo. Às vezes ele abraçava a vida como se estivesse num parque de diversões, correndo por entre os brinquedos, olhos arregalados e deslumbramento sempre à mão, entretido com a ilusão das luzes e a euforia falsa dos brilhos; em outras, o mundo parecia um imenso peso, dobrando sinos com dificuldade, construindo músicas sem compasso ou lógica, impróprio, impossível, e então era custoso acompanhar qualquer leveza. Naquele reencontro, porém, ela começou a se aproximar daquela estranha imprecisão, sujeita agora à incompreensão alheia, ignorada em sua inteireza, sobretudo nos cantos, talvez até mesmo por Tom. Agoniada com a tensão em ritmo crescente, passou a comentários superficiais dos projetos cheios de limo, guardados nas gavetas do novo apartamento. Terminaria o curso de filosofia no ano seguinte, e se quisesse poderia voltar para o Brasil e cursar as últimas disciplinas em alguma universidade pública federal conveniada; havia várias no Rio, inclusive próximas ao seu bairro. Pretendia concluir com uma pesquisa sobre arte, e olhou para ele, constrangida; ele realmente tinha razão ao acusar, no último encontro, alguma influência na escolha pelas artes. Tom interrompeu o gole de vinho para despejar, alto e forte como nos velhos tempos: ela já se esquecera que aquele não havia sido o último encontro? E sorriu, e sorriram os dois."

(velhas letras se encaminhando...)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

um trem pras estrelas

Quase noite. A bicicleta não para nunca. Paisagem de ecos, mentiras inocentes, retornos improvisados. Perdões insuficientes, impulsos para a derrocada, aquele velho desejo de congelar o tempo. Nenhum beijo, nenhuma infração, nenhuma promessa: tudo se transformava. Era uma menina antes do reencontro, e nem imaginava. Confissões heróicas e silêncios ensurdecedores, as taças proibidas de uma madrugada quase definitiva. Ainda chorariam muito pela desistência. “Te amo” – mas como? Intoxicados de adeus, jamais se desejariam um ao outro. Ainda é dia.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Um novo olhar para Nelson Rodrigues*


* versão do autor

Atribuir novos sentidos a uma obra de arte admirada há mais de meio século é o desejo de todo artista às voltas com o desafio da releitura. Tal missão foi concluída com êxito indiscutível pelo grupo catarinense Teatro sim... por que não?!!! em A vida como ela é..., baseada na coluna homônima do dramaturgo e ficcionista Nelson Rodrigues. Dirigida pelo pesquisador e professor Luís Arthur Nunes, especialmente convidado para a empreitada, a peça segue em cartaz até o dia 20 de fevereiro, no Teatro Álvaro de Carvalho (TAC), sextas, sábados e domingos.

A vida como ela é... reúne cinco contos que aliam conflitos familiares escandalosos a um forte sotaque carioca, marcas da coluna do autor, publicada no jornal Última Hora, entre 1951 e 1961. Se Nelson Rodrigues desenvolveu mais de duas mil histórias praticamente sobre o mesmo tema, traição, a companhia catarinense optou pela construção de uma miscelânea de referências, enriquecendo o universo ficcional com a exploração de elementos ausentes no original: máscaras, bonecos, dublagens, quadros vivos e, sobretudo, narração.

A atualização da autoria rodrigueana torna-se bastante clara já no primeiro conto, Uma senhora honesta, estruturado no palco a partir da simultaneidade entre a narração de dois atores e a encenação de outros, totalmente embasada na mímica. Manter a estrutura narrativa não apenas renova o texto original como ainda consegue reconstruir no palco um dos universos mais ricos do autor, seu texto impecável, repleto de frases de efeito que até hoje povoam o imaginário dos brasileiros.

Em Duas irmãs a inovação reside no uso de máscaras, artefatos das personagens que compõem o triângulo amoroso. Aproveitando a experiência com teatro de bonecos, o grupo catarinense constrói uma cena de alto impacto, onde as personagens principais são manuseadas como títeres, enquanto atores-narradores as dublam. Há uma dobra bastante contemporânea nesta versão: o espetáculo descortina-se em suas entranhas, apresentando a cena própria do teatro, como um ensaio aberto.

Doente, o quarto texto, laboratório da famosa peça Perdoa-me por me traíres, repete o ritual das marionetes. Neste caso, porém, os bonecos mesclam-se à técnica da narração, favorecendo diversas camadas de leitura. Já Noiva da morte, o terceiro conto apresentado, teatraliza a figura das famosas tias, solteironas onipresentes em toda a obra do autor, graças à iluminação especial, ao tom histriônico da encenação e ao figurino assustador. Ponto forte desta releitura, a iluminação, dirigida por Luis Carlos Nem, exalta o limiar entre o melodramático e o trágico, típico da autoria rodrigueana, em uma cena de dramaticidade ímpar nos palcos locais: o suicídio de Alipinho, enforcado nu com um véu de noiva.

Concluindo, O grande dia de Otacílio e Odete valida a própria ferramenta da narrativa, ricamente explorada pelo grupo, promovendo uma “falação” coletiva, extremamente sincronizada. Neste último texto, atrizes e atores narram detalhes deliciosos de uma nova história escandalosa, ao mesmo tempo que, como legítimas fofoqueiras de janela, encaram o público em busca de cumplicidade para mais aquele pecado.

Com trilha sonora e iluminação primorosas, o Teatro sim... por que não?!!! consegue construir no palco uma versão de alto impacto para a obra rodrigueana. Escancaradamente cômica, mas sem perder de vista a dramaticidade, traduz os textos do autor em sua maior potência: a mistura de estilos, repleta de tristeza e histeria, patético e desespero, pecado e vergonha. E vai ainda mais longe: infere novos sentidos, enriquecendo uma autoria já tão sofisticada.

Jade Gandra Dutra Martins é pós-doutoranda e autora do site www.tudosobrenelsonrodrigues.com.br.

(Texto originalmente publicado no DC Cultura / Diário Catarinense, 05/02/2011)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A unanimidade dos clássicos*

* (versão do autor)

Trinta anos após sua morte, Nelson Rodrigues segue como o grande protagonista do teatro nacional

Presença marcante na produção artística e no debate cultural do século XX, Nelson Rodrigues consolida-se cada vez mais como um dos autores fundamentais do Brasil moderno. Repórter policial, redator de jornal, consultor sentimental, cronista do cotidiano, folhetinista de sucesso, tradutor fantasma, romancista esporádico, contista popular e autor de uma dramaturgia aplaudida em todo o mundo, construiu uma obra capaz de resistir às ferrugens do tempo, atual e contemporânea numa diversidade de níveis poucas vezes alcançada por seus pares.

Historicamente, a atualidade rodrigueana ecoa a partir da fixação, agora irrevogável, do nobre epíteto de “pai do teatro brasileiro moderno”, pioneirismo reconhecido já em sua segunda e mais famosa peça, Vestido de Noiva, de 1943. A visão em retrospectiva permite responsabilizá-lo ainda pela paternidade do próprio teatro brasileiro, antes da sua estréia um apanhado difuso de personagens influenciadas por contextos estrangeiros e textos despreocupados com especialização e/ou autoria, sem continuidade ou relações - na melhor das hipóteses, um teatro feito no Brasil, geograficamente falando.

Se a relevância histórica associa-se à modernidade poética implantada na dramaturgia brasileira, bem como à completude do nosso processo de formação, a potência estética do projeto rodrigueano reside na complexa utilização dos elementos literários, tensionando estilos e gêneros. Pioneiro na edificação de um teatro rico em referências, sintetizou influências diversas com exclusividade, atraindo a crítica (e repelindo também) pelo sincretismo estéticos das suas peças, hoje um recurso recorrente. Durante a trajetória iniciada em A mulher sem pecado, de 1941, até A serpente, de1979, seu último texto, dialogou com correntes clássicas e marginais, alimentando-se de surrealismo, expressionismo, nonsense, noir, grotesco, melodrama, trágico e tantos mais. A marca estética de sua dramaturgia é justamente a ênfase nesta idéia bastante contemporânea de acúmulo, limite e ausência quase absoluta de contenção.

Se é a mistura de gêneros que preserva sua inequívoca atualidade estética, politicamente cada uma das peças consegue construir um olhar exclusivo sobre o Brasil e os brasileiros, eixo principal de toda a sua dramaturgia. A recriação temática de um país atordoado diante das transformações daquela sociedade (Anos 1950 e 1960) ressignifica limites típicos da nossa própria pós-modernidade, abordando, simultaneamente, um tempo que luta para permanecer e outro que teima em se adiantar, contraste que persiste até os dias de hoje, comum às nações em desenvolvimento.

É no embate entre o passado do luto fechado, do sexo limitado ao matrimônio, dos olhares de soslaio e do namoro de portão, e as demandas da pílula anticoncepcional, do sexo livre, do poder das mulheres, da apologia aos jovens, dos umbigos desnudos e dos biquínis que nasce a visão trágica e bipartida de uma dramaturgia que tenta recriar uma tensão típica da fronteira, contemporânea ao próprio autor e ainda nossa.

História, Estética, Política: três vezes pioneiro, inovador, renovador. Nelson Rodrigues pode ser lido hoje como o autor brasileiro que melhor se debruçou sobre as ambigüidades de uma nação dilacerada em tão diversas camadas. Instaurar essa tensão no processo interno de sua obra, priorizando sem medo as flutuações entre fronteiras, persistentes até nos nossos tempos líquidos, torna seu pensamento não apenas atual como definitivo. Transforma-o, ainda, ironicamente, numa daquelas unanimidades que ele tanto combateu. Uma unanimidade essencial.

Jade Gandra Dutra Martins é pós-doutoranda e autora da tese Nelson Rodrigues e sua cena: dramaturgia da tensão, cinema da síntese.

(Texto originalmente publicado no DC Cultura / Diário Catarinense, 15/01/2011)