segunda-feira, 14 de março de 2011

Às margens do tempo

Obra de Faulkner narra decadência de família presa entre a memória e a ausência

Um passado opressivo que afasta qualquer possibilidade de horizonte. Uma família destruída pelo peso das lembranças, à espera da extinção redentora. Um presente pálido, sem ação e sem futuro, conduzido por heróis falíveis que jamais encontraram razões para suas lutas. Uma linhagem ameaçada pelo tempo, um tempo cruel e misterioso, que corrói a experiência humana como uma ferrugem faminta.

Terceiro romance do norte-americano William Faulkner, o recém-lançado Sartoris (Cosac Naify, 416 pgs.), de 1929, desbrava os infortúnios do clã homônimo, imobilizado entre os grandes feitos do Coronel John Sartoris, morto na Guerra da Secessão, e a permanência em um mundo herdado, em constante decomposição. Estreia do condado fictício de Yoknapatawpha, no Mississipi, o livro esboça boa parte do estilo que marcaria a poética do autor, e que lhe renderia o Prêmio Nobel de Literatura, em 1949.

O protagonista Bayard Velho, nascido “tarde demais para uma guerra e cedo demais para a guerra seguinte”, compartilha com o filho de mesmo nome velhos traumas – ambos perderam irmãos em combate. Tia Jenny, a irmã mais nova do coronel, vela os tempos de outrora, valorizando o sentido do passado e mitificando a sucessiva marca trágica dos homens da família. Nesta existência voltada para o que já foi, ignora o propósito das novas gerações: “Eles não são os meus Sartoris”.

Como em toda a ficção do autor, os homens daqui adquirem identidade a partir da soma dos seus infortúnios - por isso a impossibilidade de libertação dos próprios fantasmas. Há sempre algo maior que assombra o indivíduo, impedindo a afirmação do presente e guiando a existência como uma ampulheta esburacada, resquício das incertezas alardeadas em anos de Guerra Civil, na construção do ethos sulista.

O peso da experiência passada, com seus ferimentos e seu sentido indubitável e majestoso, verga a mansão de origem escravocrata da família, impondo ações raquíticas e intensa memória. Quase não há atividade: parte porque a monumentalidade da escrita do autor parece se bastar, parte porque a vida é escassa em existências orientadas pelo passado. Graças a esta cortina de fumaça, as circunstâncias preponderam sobre os fatos e os grandes atos das personagens são apenas sugeridos, abrindo o palco para suas consequências, sobretudo as internas.

Tudo aqui é desespero, culpa, prisão. Não à toa, Bayard busca dia após dia o acidente que irá redimi-lo de uma existência inoperante, seja pelo excesso de bebida ou de velocidade. Contando a sua primeira saga em Yoknapatawpha, Sartoris percorre conceitos que atravessam a ficção de William Faulkner como um todo: heroísmo e resistência, habilidade e desistência, impossibilidade e permanência.

Ao mesmo tempo que articula uma série de procedimentos modernistas que viriam consagrar a obra do escritor, sobretudo após O som e a fúria, também escrito em 1929, constrói um universo: levanta, pela primeira vez, a poeira incômoda e eterna das estradas do sul.

Jade Gandra Dutra Martins é pós-doutoranda em Teoria Literária.

(Texto originalmente publicado no DC Cultura / Diário Catarinense, 12/03/2011)

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