quarta-feira, 28 de outubro de 2009

urgente & loucamente

- Ainda dá tempo - Frederico sugeriu, com os olhos molhados.
- Tempo há.
Lívia fez uma pausa, para continuar:
- A esperança é que sempre termina antes do tempo.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

surpresa das boas

Nunca fui tarantinomaníaca, longe disso. Do diretor nerd & over & pop, gosto de Cães de Aluguel, cujo roteiro considero genial, e Pulp Fiction, bacaníssimo (principalmente pelo retorno do carismático John Travolta). Adoro também, e muito, Natural Born Killers, mas como Tarantino garante que Oliver Stone destruiu o roteiro dele, não posso reinvindicar o posto de fã (ainda que Juliette Lewis permaneça até hoje como minha musa suprema). No mais, nunca consegui terminar Jackie Brown, muito menos Kill Bill, chatíssimos - na minha modesta opinião de poucas referências. Despida, então, de QUALQUER expectativa, fui assistir Bastardos Inglórios, crente de que a apropriação do tema 2ª Guerra Mundial pelo amante dos miolos estourados resultaria em algo, no mínimo, kitsch e mal intencionado.

Adorei me enganar redondamente.

Bastardos Inglórios reúne as melhores armas do diretor (sem trocadilhos): diálogos afiados, roteiro bem amarrado, estruturação circular, referência pop, trilha surpreendente, violência gratuita, releitura dos seus clássicos (jamais os clássicos da história do cinema), cultura do pastiche, kitsch como orientação e aquelas tantas oitavas acima, sua marca mais original. Desta vez sem picotes (estréia no estilo?), o roteiro é dividido em capítulos que narram duas histórias mais ou menos paralelas, com uma penca de rabichos pelo meio (destaque para a espiã trapalhona de Diane Kruger e a maravilhosa historinha do herói de guerra ovacionado pelo povo alemão, apaixonado pela maior inimiga da sua amada pátria).

A primeira história central é a da bela Shosana, única sobrevivente de um massacre judeu, dona de um cinema na França. A segunda, do bando Bastardos Inglórios, "sanguinários" dispostos a exterminar o nazismo com as estratégias mais primitivas ("o negócio é abater todos os uniformes nazi"; "só vale escalpelado"). A motivação para ambos os núcleos é a mesma, mas nenhum deles sequer desconfia da coincidência, o que rende momentos muito engraçados, sobretudo no desfecho - uma sucessão de confusões que, graças ao improvável sucesso, culmina numa espécie de justiça tardia para toda a civilização ocidental ainda assombrada pela ascensão de Hitler.

Descontado o primor do roteiro, repleto daqueles viciozinhos deliciosos de Tarantino, como concluir sempre com alguma gag exposta no primeiro terço do enredo, o filme chama a atenção por conseguir imprimir ao evento de horrores uma visão exclusiva (e original). A Alemanha nazista de Tarantino é o território de proliferação do kitsch, do bizarro, do freak, do estúpido, do nonsense e do gratuito. Tudo aqui rima com simulacro, absurdo - inclinação que potencializa ainda mais os préstimos da exploração da violência gratuita, colocada à serviço de uma história (História) que se alimenta desta mesma aviltante gratuidade.

Bastardos Inglórios apela para o pastiche como estilo de narrativa, o que fica bastante evidente já a partir do segundo capítulo*, sobretudo com os histrionismos de Brad Pitt no papel de Aldo, o chefe do bando (atuação que não agride, já que dialoga com a estética do filme). A 2ª Guerra Mundial aqui é refeita com base numa paródia (relativa) que consegue ser debochada, crítica e respeitosa ao mesmo tempo. Diferentemente de A vida é bela, que imbeciliza a tragédia dos campos de concentração ao apostar num enredo fabular, Tarantino constrói uma versão inteligente que nos traz um Hitler histérico, um Goebbels medroso e um chefe da polícia nazista vaidoso e confuso. E já estava na hora de alguém sujar as mãos pra falar dessa gente com menos dados e mais rancor.

Bastardos Inglórios ainda acerta as contas com o passado, apostando num desfecho apoteótico e insano, bem à Tarantino, que diverte ao mesmo tempo em que nos faz pensar sobre os rumos do mundo pós-Shoah**. E conseguir reler um tema de tamanha complexidade, sobretudo tão afastado do seu próprio universo, não é pouca coisa.

Bonzíssimo - mesmo sem a Juliette Lewis.

* Em tempo: os primeiros 20 minutos do filme já compõem o rol das melhores aberturas da história do cinema (alimento essa lista há anos). Muito, muito, muito bom. Magistral.

** Pra quem não sabe, Shoah é o termo hebreu que designa catástrofe. Vem sendo utilizado no lugar de holocausto, que significa sacrifício, por ser considerado mais adequado ao massacre perpetrado pelos nazistas e aliados contra os judeus (só fui saber disso na pós, quando estudos de testemunho da Shoah viraram uma das minhas obsessões, por isso a explicação).

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

meus mais (parte dois)

:: Palmeiras Selvagens (William Faulkner, 1939)*

"Estamos entre a dor e o nada", sentencia uma das personagens centrais da narrativa, o médico e virgem Henry Wilbourne, de 27 anos. Charllote, a perturbada companheira, casada e mãe de duas filhas, ouve calada, atada aos próprios fantasmas. Tentando driblar os sofrimentos indizíveis desta paixão de verão, o casal exila-se numa praia, de frente para a natureza selvagem. Ilhados, então, apenas um e outro, potencializam ao máximo as feridas e exercitam alguns tipos cruéis de intimidade: rancor, ódio, mágoa, desencontros, desacertos.

Palmeiras Selvagens, a história de (des) amor, é apenas uma das partes do romance de Faulkner. O Velho, apelido do Rio Mississipi, compõe o restante da obra, recebendo o mesmo número de páginas. Deslocado da temática anterior, e estruturalmente recusando qualquer elo narrativo, o escritor esmiúça aqui a luta de um presidiário para sobreviver à furiosa enchente, após cair na água durante o translado de bote e ser tragado pela correnteza do dilúvio.

Aparentemente, não há conexão entre as duas fatias. Conhecido pela habilidade na arquitetura dos romances, pensados e erguidos a partir de sofisticados artifícios, Faulkner agora dispensa qualquer intersecção, recusando os manjados (e muitas vezes necessários) cruzamentos ao fim da narrativa. Não espere explicação, nem alento, sequer sugestão. Ainda assim, concluída a leitura, permanece uma impressionante sensação de que estamos lendo versões diferentes de um mesmo ato, o ato da resistência.

Autor (por excelência) das mazelas e idiossincrasias do sul americano, projeto central da sua ficção, Faulkner é especialista no retrato dos limites da experiência humana. Até quando resistimos? Até onde vai a nossa força? Quanto possuímos de fé? Somos corajosos ou acomodados? Em Palmeiras Selvagens, anterior ao Nobel de 49, esta espécie de ética da persistência costura os grandes achados do texto, unindo, relativamente, as duas narrativas.

O presidiário que inspirou seu assalto em leituras de folhetins tenta desesperadamente manter-se vivo em meio à fúria destrutiva da natureza. O casal insólito (e proibido) luta para sobreviver diante das impossibilidades do contemporâneo. Charllote, aparentemente frágil, é quem mais insiste: "aguento meses seguidos de fome no estômago, mas não aguento um minuto sequer de fome no peito". Uns remam, literalmente, contra as forças da chuva. Outros, contra as forças internas. Para Faulkner, são todos uns desgraçados, mortificados por batalhas inglórias.

Se o tema da resistência insinua-se nas entrelinhas, não há quase nada de factual no plano aparente. O visto não passa de uma sequência de cenas, historinhas, cotidianos. O ápice do drama, inclusive, está já na abertura do romance: o aborto de Charllote, que marca a consequente condenação de Henry, autor do feito, a 50 anos de cadeia, por homicídio. Na segunda narrativa, o auge da atividade ocorre quando o presidiário ajuda num parto, roçando certo contato com a trajetória do casal enclausurado, e desafiando as leis da lógica e do dilúvio.

Enquanto o primeiro texto parece determinado segundo leis trágicas, sobretudo pela plena consciência dos envolvidos na inviabilidade do projeto que tentam manter de pé, persistindo dia após dia no erro, O Velho mantém certa dose de humor, característica do autor (evidente em Enquanto agonizo**). Até mesmo pelo empenho bizarro do presidiário: chegar a qualquer lugar onde consiga se entregar à polícia e voltar à cadeia. Quando consegue retornar, finalmente, enfrenta uma horda de burocracia para se "alojar" porque é dado como morto.

De resto, pouquíssima ação, justificada num projeto ficcional calcado na reconstrução da vontade humana como uma pálida intenção diante das verdades do mundo. As personagens do autor estão sempre à deriva: da história, da natureza, dos desejos, da experiência, da vida. Se a enchente é obra do acaso, nos obrigando à entrega, o amor aqui também recusa o paliativo da escolha: imperativo, ele devora os sujeitos. Não temos, no fundo, a oportunidade de agir.

Em Faulkner, o monumental está sempre no entrevisto. O mundo quase sempre é sugerido como um espaço inabitável, embora tal sentença não se torne texto em nenhum momento. Há sempre algo maior que assombra a existência individual - por certo um resquício escamoteado das incertezas levantadas pelos anos de Guerra Civil, na construção do ethos sulista. Talvez por isso não seja o fracasso que derrota o indivíduo faulkeriano, e sim a desistência.

Ao passo que economiza na ação, esteticamente constrói uma obra majestosa (e o adjetivo não é gratuito). Especialista em escrever sobre nada, Faulkner narra com toda a categoria o insólito, descortina o corriqueiro, transforma cenas prosaicas em narrativas construídas à facão, num labirinto de escolhas cuidadosas e originais. Posicionar a humanidade entre a dor e o nada foi a forma encontrada aqui para dar voz a uma das máximas da sua civilização: estamos sozinhos, somos sozinhos, do princípio ao fim. E a maneira como realiza tal empreitada, com frases sinuosas, recortes imprevistos, monólogos sem travessão e todo tipo de digressão, sobretudo as descritivas, esmaga qualquer escritor. Qualquer, mesmo. Mestre absoluto.

* Sei, sinto e reconheço a superioridade de Luz em Agosto, romance de 1932, para a compreensão da obra do autor. É gritante a diferença, em relação a qualquer outra experiência literária, e eu mesma acho um dos livros mais bem escritos de TODOS os tempos. Ainda assim, mesmo bem menos ambicioso, não tão perfeito na mescla de tema e estrutura, não tão representativo da sua ética e dos seus dilemas, meu eleito sempre foi/será Palmeiras Selvagens. Sem qualquer razão além da mais indesejada no cenário crítico: me fala ao coração.

** Nunca consegui concluir O som e a fúria, de 1929. Ainda espero triunfar na empreitada.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

resenha para um amigo

Sem medo do clássico*
(versão do autor)

João Hernesto Weber pertence àquele rol de professores que marcam a trajetória dos alunos, seja pela ironia impressa nos debates orientados em sala de aula, seja pelo extenso conteúdo apresentado nas grades. Acompanhar seu pensamento, porém, já não é exclusividade dos freqüentadores dos embates literários brasileiros, circunscritos num universo de congressos, pesquisas e artigos científicos. O lançamento de Tradição Literária & Tradição Crítica, sua mais recente coleção de ensaios, expande a experiência do autor para além dos limites da academia, reposicionando ricas discussões sobre o Brasil, a literatura daqui e sua crítica.

A direção de Weber, importante frisar, é avessa a modismos teóricos de qualquer espécie. Se a universidade muitas vezes remaneja expectativas em função do filósofo estrangeiro em voga no momento, ele dispensa o hype e se debruça sobre a cartela habitual de preferências, com raízes bem fincadas. Pensando o processo de formação da nossa literatura, dialoga com Antonio Candido, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, pelos quais nunca deixou de nutrir certo “respeito-ternurinha”, como sugere já na escolha da epígrafe, de Carlos Drummond de Andrade. Analisando nossos pontos altos, recorre a ficções do porte de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos. Na base da paisagem, norteando o pensamento, multiplicando a profundidade, a sombra do filósofo alemão George Lucacks, autor de Teoria do Romance. Weber é clássico, e Tradição Literária & Tradição Crítica comprova a eternidade do olhar que lança sobre povo e nação, ficção e história, ordem e desordem - sempre na releitura dos seus eleitos.

Estimulado pelo objetivo de relacionar literatura e sociedade, legítima missão à linhagem de Weber, e título de clássico recorrente ao longo do livro, o grupo de 14 textos compõe um sofisticado painel das discussões formativas mais relevantes da nossa historiografia crítica. A complexidade aqui está no intercruzamento, perseguido também, do pensamento brasileiro com as ficções mais profícuas da nação. Discutindo afastamentos e zonas de contato entre as teorias de Candido, Schwarz, Raymundo Faoro e outros tantos, em Algum “desconforto crítico”, Weber revitaliza a obra de Machado de Assis, construindo sua própria Capitu, ao mesmo tempo em que remete às construções de Schwarz sobre as meninas do bruxo do Cosme Velho. Partindo do título do livro de poemas de Guilhermino César, também crítico e historiador, em Arte de Matar, desconstrói o discurso contemporâneo das desconstruções, numa metateoria repleta de ironia, reivindicando a validade das análises marxistas que buscam relacionar literatura e sociedade. Clássico, sem dúvida, inclusive nas críticas.

Quando discute diretamente formação, seja crítica ou literária, Weber ratifica a potência de um pensamento que resiste mesmo diante das flutuações teóricas típicas do meio por onde transita. Sua compreensão da importância de Antonio Candido, bem como das relações tecidas entre o crítico e seus seguidores, ainda que distanciadas em tantas instâncias, ajuda a explicar não apenas os (des) caminhos da nossa literatura como também a própria consolidação da experiência intelectual brasileira. A riqueza da abordagem encontra-se nos desdobramentos infinitos: enquanto desvela a literatura por meio da estrutura social, e a própria sociedade por meio da ficção, Weber ainda incute significado nos desdobramentos da trajetória de cada um dos críticos com quem dialoga, ao longo dos ensaios. O Candido autor de Formação da Literatura Brasileira, por exemplo, difere em muito do ensaísta de Dialética da Malandragem, quando já revia os próprios vácuos teóricos. Lançar luz sobre tais nuances, imperceptíveis muitas vezes, é um empreendimento executado com cuidado (e raro respeito) pelo pesquisador.

Dotado de incisivo espírito crítico, até mesmo quando discorre sobre os seus mais caros companheiros de jornada, Tradição Literária & Tradição Crítica oferece lições definitivas ao leitor sobre o que é ser brasileiro. Discute nossa formação, literária e crítica, apontando pontos culminantes e seqüestros impróprios; revê e relê nossos clássicos, incentivando o consumo permanente; apresenta novas entradas de leitura, expondo em muitas páginas abordagens diferenciadas e originais, sobretudo nas análises de Machado de Assis e Guimarães Rosa; homenageia um método de trabalho que permanece contemporâneo mesmo em meio à enxurrada de novidades, ao mesmo tempo em que se posiciona no centro dele, fazendo parte, agora ele próprio, Weber, de uma tradição que ajudou a esboçar, construir, pensar, analisar, consolidar.

Tradição Literária & Tradição Crítica interessa a qualquer brasileiro. Estudiosos e curiosos encontram aqui uma chance única de conhecer um olhar apurado sobre os atos mais definitivos da crítica e da literatura brasileiras. Ex-alunos e colegas têm ainda mais sorte: as 167 páginas de ensaios nos levam de volta às salas de aula, palco no qual o autor apresenta ao vivo as lições ofertadas aqui. Essa, sim, é a melhor parte.

Jade Martins é doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina.

* Texto publicado no caderno DC Cultura, do Diário Catarinense, em 17 de outubro.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

like a flower, waiting to bloom...

"Virou-se então para a direita, em busca das vozes que soavam um pouco mais distantes do que quando atravessara deslumbrada o charmoso galpão. Bateu o rosto num emaranhado de samambaias que desciam do teto, presas por fios de nylon quase imperceptíveis, e teve a impressão de ouvir lamentos de despedida. Dobrando de novo à direta, e agora já quase no terraço que se abria para a rua, de lado para o mar, encontrou um grupo de oito ou nove pessoas bajulando-se num tilintar alegre de taças, envoltas em perfumes doces e vestidos suaves, trocando sutis palavras de agradecimento, preparadas para se servirem em bando de mais bebida, e logo retornarem. Espiou entre as plantas, avistou o grupo partindo e deteve o olhar sobre aquele que restou, ele, o garoto, quase o motivo para aquela noite, Tom, como poderia ter esquecido? Sem notar que estava sendo observado, ele saltou imediatamente para o parapeito do terraço, equilibrou-se com apenas uma mão, na outra segurava uma taça de champanhe, e espichou-se inteiro, recebendo de braços abertos a fresca brisa do início da madrugada. Os pés, enormes, ocupavam quase toda a extensão do parapeito, numa estreiteza de medidas que acentuava ainda mais a impressão de que tombaria a qualquer instante. Bastou um olhar demorado, porém, para logo reconhecer a velha administração competente dos riscos, peito aberto, queixo firme apontado para a frente, corpo grande e largo em total equilibrio, como o leme de um barco que jamais afundaria, seguro como só ele conseguia ser e parecer, sobretudo parecer. Estava mais gordo, ela reparou, embora tenha sido uma criança quase sempre acima do peso, por mais que corresse com a amiga pela praia até precisar se jogar na areia para acalmar os saltos do coração. Estava mais bonito também, como se os anos tivessem lhe arrancado as bochechas e os olhos infantis, como se a vida tivesse lhe presentado com um traçado mais fino, ângulos quase agudos agora, talvez até um olhar mais grave. Quando levantou uma perna, cambaleando em busca de um novo ponto de equílibrio, só pelo prazer de sentir aquele aperto no estômago, apenas para se sentir corajoso como nenhum outro, em guerra, sempre, quando brincou e se mexeu e pulou e quase saltou dali do alto, fingindo estar num murinho baixo de garagem, Nina percebeu que era o mesmo Tom, sim, não restava dúvidas."

(by myself)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

trechinhos

"O chacoalhar vagaroso e lento do táxi desviava sua atenção das lombadas frequentes. Enquanto o sono sussurrava palavras de consolo, sentia o desejo da conversa definitiva, antes tão vago, transformar-se em imperativo; diferentemente das outras vezes, o pensamento agora tomava a forma de decisão, à espera da maneira mais rápida e indolor de alcançar o mundo. Desde a chegada na cidade, reconhecia a necessidade daquela ordem penetrar de maneira irremediável dentro de sua intimidade; então, não dependeria mais de palavras de encorajamento nem ensaios em frente ao espelho. Seria logo, na manhã seguinte, e a nova dor originava-se justamente do caráter inadiável recém-impregnado na situação. Com os pensamentos um tanto desordenados, mais pelas últimas horas levadas diante do passado inacabado do que pela certeza cruel dos próximos passos, pagou o motorista e lhe desejou boa noite. Custou a abrir o pesado portão de ferro e procurou as partes secas do chão para evitar encharcar a sola do sapato na grama úmida de dezembro. Entrou em casa cuidando com o barro e se assustou com o relógio marcando quatro e trinta. Quatro e meia da manhã, quase cinco, já o outro dia, o dia que apagaria mais aquela luz. E se resolvesse tudo aquilo naquele instante? Não, não, não era possível. Embora tenha cogitado durante alguns segundos, olhos presos no telefone preto, coração batendo sem ritmo à procura da melhor maneira de dizer nunca mais, agora já era, já foi, desistiu do telefonema ao assumir que não estava completamente sóbria, nem completamente sã, com completamente equilibrada. Faltava-lhe estrutura para não se comover e segurança para se manter de pé, depois de todas aquelas taças, sobre os centímetros a mais da sandália. Pelo receio de pôr tudo a perder, a velha precipitação companheira dos seus momentos cruciais, no quais era tomada pela perigosa dificuldade de manter-se parada, à espera da hora certa de ir adiante, jogou-se na cama sem trocar de roupa, ainda com os restos da maquiagem. Não teve tempo de pensar em nada, apenas fechou os olhos e dormiu, embalada pela mistura de bebidas, pelo sono bom às vezes trazido pelo álcool, pelas tristezas que começavam a ir embora, pela valentia com que encarou o sorriso de canto de Daniel, por ela mesma, a própria Nina, que voltava a ser, ainda bem, voltava a ser aquela menina valente que se recusava a alimentar o sofrimento. Antes de cair no sono, prometeu, de si para si: jamais sentiria saudade dela mesma de novo. "

(ibid idem)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

letrinhas (por ora) engavetadas

"Talvez quando encontrasse um zero de onde recomeçar conseguisse enumerar com mais desenvoltura as coisas todas que continuavam à sua espera. Haveria de fazer planos também, afinal sempre os fizera, e talvez até algumas resoluções já estivessem tomando forma, ainda que timidamente: voltaria para o Rio de Janeiro, era lá o seu lugar; organizaria visitas mensais ao sul, onde já reencontrara aconchegos preciosos como um novo horizonte; retomaria a rotina das hípicas, reavendo ao menos aquele talento; escreveria sobre tudo aquilo, e escreveria sempre, o que quer que estivesse fazendo a cabeça falhar. Uma névoa, no entanto, quase lhe arrancava as certezas uma a uma: permanecia sem destino para a inquietação que crescia em velocidade constrangedora desde que vislumbrara de novo a pequena rua sem saída. Só sabia que era algo incontrolável, e que preenchia com fúria todos os outros planos, inadiável, imprescindível, a única sugestão capaz de dotar de alguma tranquilidade os anos futuros".

(meu livro de gaveta)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

diálogos nonsense no trânsito...

(para no farol, sol a pino, abre o vidro pra ouvir as propostas do ambulante. zero paciência.)

- Quer comprar um livro de piadas? Já estou na segunda edição.

- Não estou pra piadas, moço.

(o humor negro da vida é coisa espantosa!)

- Posso dizer uma última coisa? Juro que não é piada.

(um sim rápido, de olhar baixo)

- Você é muito bonita.

(!!!)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

meus mais

Como discutir literatura é uma das missões deste blog, quase sempre substituída por incursões ficcionais ligeiras e biografemas inconclusos, preparei uma lista com a dezena de historinhas que me transformaram naquilo que sou hoje (pro bem e, principalmente, pro mal). Meus dez mais foram lidos, relidos, vistoreados, devorados e pensados ao longo dos últimos anos, rendendo as impressões abaixo. Discípula obediente de Nelson Rodrigues, acredito piamente que o único prazer (intelectual) maior do que a leitura é a releitura. E, para finalizar, é sempre bom deixar claro: a escolha foi feita de súbito, desprezando, ao mesmo tempo, a isenção e o hype. Ou seja, as opiniões remetem apenas a sentimentos inexplicáveis e intensos, não a teorias literárias, "clássicos obrigatórios" ou teses de terceiros, embora às vezes a coincidência ocorra. Sem preocupação alguma além da satisfação, a única ordem aqui é liberdade. *


:: Suave é a noite (Scott Fitzgerald, 1934)

Há algo de trágico na trajetória do prodígio Dick Diver, médico que abandona a psquiatria para se casar com uma bela paciente, a milionária e esquizofrênica Nicole Warren. Nas três partes que compõe o romance, expostas em ordem não cronológica, quase tudo é impossibilidade, derrocada, fracasso - embora as três palavras não pontuem a narrativa, exemplo da sutileza do autor. Dick era um zé-ninguém que prometia tudo, sem cumprir nada. Nicole era uma garota que encontrava tudo à mão, menos o principal. Juntos, viveram a aventura de uma geração, perdida já nas primeiras linhas, esbanjando dinheiro, juventude e expectativas como se jamais fossem acordar no dia seguinte. Ao contrário dos romances anteriores, nos quais narrou com maestria as madrugadas iluminadas dos anos 20, Suave é a noite é a obra da ressaca, a única que detalha a manhã seguinte aos excessos inevitáveis.

Os porres homéricos, a paixão proibida (e salvadora) do protagonista pela fútil Rosemary, a luta (inglória) de Nicole contra os fantasmas da infância, o estilão boudoir das intrigas e dos desfechos, os coadjuvantes perdidos em cenas hilárias e/ou tristes, os navios flutuando de um lado a outro, a imagem do imponente hotel nas bordas do mar azul da Riviera**, o deslocado duelo decidido entre um gole e outro, a vida que passa com excessiva rapidez, sem aceitar os freios da cautela e/ou do planejamento, corroendo sonhos e liberdades, furiosa e descontrolada, entregue à ruindade mais terrível de cada personagem. Ruindade porque descrença, preguiça, comodidade. Uma profusão de males, males que nascem de escolhas, as escolhas erradas da vida.

O grande barato aqui, o mais tocante, é certa sensação compartilhada por quase todas as personagens do livro: olhar para trás e não gostar do que encontra; encarar o espelho e vislumbrar algo (muito) imprevisto. Diferentemente da civilização construída em seus outros três romances, Este Lado do Paraíso, Belos e Malditos e O Grande Gatsby, o tempo passou em Suave é a noite, e já não somos mais jovens, nem belos, nem contamos com um futuro repleto de páginas em branco. Há uma tristeza funda na constatação da melancolia. Mas há uma contrapartida típica da obra de Fitzgerald, um generalizado e infantil "dane-se, somos melhores, continuamos sendo melhores, porque tivemos coragem para viver isso". Mesmo que "isso" signifique uma grandiosa derrocada, talvez até pelo imperativo da queda.

Há certa afetação no texto, adjetivado e cheio de plumas, marca da poética do escritor, que entrou para a história americana justamente por adotar o contraponto estilístico do colega e inimigo Hemingway (com quem, inclusive, costumava comparar seus dotes nos lavabos da high). Escrito em longuíssimos oito anos, enquanto o próprio Fitzgerald padecia entre clínicas contra o alcoolismo e visitas ao hospício da mulher Zelda, Suave é a noite é formalmente irregular, bagunçado e muitas vezes, muitas mesmo, levado às pressas. Ainda assim, o resultado constrói um monumento de clima, frescor, legitimidade. As últimas cenas de Dick na Riviera, olhando o mar ao longe, órfão de afeto e de bebida, faminto da juventude que tanto temeu perder, continuam me deixando com os olhos molhados, mesmo após uma dúzia de releituras.

Derradeira incursão literária do autor, já que O Último Magnata é obra póstuma, Suave é a noite é todo Fitzgerald: as experiências, as marcas, o estilo, as dores, a cena, os defeitos, os alívios***. Mesmo se não fosse tão bom, só por isso já valeria a pena.


* Este post deveria abarcar todos os meus mais. Como me passei na análise, publicarei um por um. Nada mais justo: me recuso a me economizar, sobretudo para os meus favoritos.

** Sou tão devota que reproduzi, na minha primeira viagem à Europa, TODO o roteiro Cote d'Azur vivido pelo casal Dick e Nicole, com direito a fotos em cada uma das praias e uma sessão extra na pequena Saint Raphael, onde a família da moça construiu seu hotel. Sick, admito.

*** Palavra de quem leu mais de dez biografias de Scott Fitzgerald, duas de Zelda Fitzgerald, a mulher dele, incontáveis perfis, dois livros sobre o casal e uma compilação de cartas trocadas.
Sick total, admito.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Charlie & Lola

Começou com um susto bobo: "Você escuta Nirvana?!?!". Era aniversário dela, e ele chegou ao pequeno bar central antes de qualquer convidado, inclusive da própria anfitriã, que comemorava 19 anos àquela noite. Não aceitou bebida nem cigarro. Ela achou aquilo um saco.
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(um) tudo (quase) desaparecendo

Flores cor de rosa nas mesas, uma pequena cozinha encomendada na véspera, aquele vestido rodado de renda. Dúvidas, insistentes e variadas, uma penca delas. Gosto amargo de fim, suspiro de recomeço, velho prenúncio de desespero. Inevitável sofrimento, sussurrava a vida, irônica e surpreendente; dor ainda branda, rascunho apenas. O peso imenso das costas derrubava expectativas, atrasava a experiência, destronava sorrisos. Há dois meses sentia-se enfiada na rota errada, incapaz de explicar "porquês" e "quandos". Forgotten Boys com Charlie era uma maneira masculina de gritar seu basta. Ignorar os fantasmas, ou aceitá-los de vez, à revelia do cartesianismo dos chatos. Em menos de uma hora já experimentava a única madrugada tranquila daqueles meses imundos. Nunca nomeou os motivos: a cumplicidade se infiltrava sem qualquer resistência, dispensando o empenho, espontânea como todos os legítimos. Ao fim das canções, atravessaram lado a lado as dunas molhadas. Sem qualquer palavrinha, embora fossem cheios delas, voaram de tão leves. Ali Lola entendeu o que era ser livre.


(um) tudo (quase) nascendo

Sempre houve mais angústia ao lidar com princípios do que com fins. "Hábito", ela se defendia. Charlie refutava o argumento com a provocação de sempre: a zona de conforto de Lola não comportava a felicidade. Naquele dezembro, quando acordou e observou o inquietante entorno, lembrou-se dele, e da sugestão espinhosa: tudo se confirmara, de súbito, sem tabelas de planejamento, contrariando as mais incautas previsões. Tudo, todas, sempre, nova série de definitivos. "Morte, nascimento, como reconhecer?" - a velha pergunta da infância. Os olhos arregalados denunciavam o susto (pavor?) diante da precisão da roda-viva, alheia às convicções, aos subterfúgios, aos esconderijos. A vida riu dela, e ela agora ria sozinha. "Me leva até o seu quarto pela mão"- ecos, pistas, palavras soltas. Vento frio, de congelar o estômago. Ventania que aquece o coração. Falta de fome, de norte, de escuro. Falta de costume. Perderam-se em outra noite esquisita. Ali Charlie acompanhou calado o tormento sorridente de Lola, vítima voluntária daquela felicidade assustada e livre. Leves, juntos, de novo, sempre.

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Ele esteve lá em todas as necessidades: arrancos, tédios, dramas, dores, atropelos. Ela compartilhou cada pedaço de felicidade, raridade diante da velha mania de sorrir sozinha. Charlie hoje em dia finge que bebe. Lola ainda escuta Nevermind.