sábado, 25 de junho de 2011

Desconstruindo Woody Allen *


* versão do autor

Obra do diretor norte-americano sugere três leituras distintas sobre as aventuras e as paranóias da civilização moderna

Com mais de 40 filmes no currículo, Woody Allen firma-se como uma das mais potentes assinaturas do cinema contemporâneo. Disputado por artistas de renome e com uma coleção de medalhas cults e sucessos de alcance popular, ancora sua poética no debate de dores e aspirações típicas da modernidade. Observada a partir da sua mais recente obra, Meia Noite em Paris (em cartaz nos cinemas do estado), a autoria do roteirista, diretor e ator norte-americano insinua a construção de três grandes palcos para a experiência humana.

O primeiro, presente ao longo de sua trajetória, enfatiza o caráter trágico de situações comuns à atualidade (ainda que desconfortáveis), impondo escolhas extremas e definitivas, que transformam a vida dos (anti-) heróis, expulsando-os da zona de conforto. É o caso de Crimes e Pecados (1989), que conta o drama do médico Judah Rosenthal, disposto a assassinar a amante para livrar sua reputação de interferências negativas. O mal-estar retorna em Match Point (2005), microcosmo do seu "cinema de dilema", no qual o protagonista Chris Wilton vive um pesadelo à Dostoiévski após se envolver com uma aspirante a atriz.

Quando se afasta do trágico, Allen ergue um outro universo, excêntrico agora, que remete à maneira libertária como o espanhol Pedro Almodóvar encara a realidade. Segue, então, o caminho inverso: abandona a tragificação do cotidiano, naturalizando as situações mais exóticas, simplificando descaminhos (aparentemente) chocantes, amplificando o mínimo detalhe que transforma desvio em imperativo. É este Woody Allen subversivo que aparece, por exemplo, em Vicky, Cristina, Barcelona (2008), palco de inusitadas escolhas sociais.

Em ambos os casos, desenvolve uma discussão ética: em última instância, o modo como adaptamos (ou não) nossas buscas e aspirações à sociedade. O que difere um universo do outro é a naturalidade com que suas personagens mais livres sobrevivem aos próprios dilemas e erros. E é justamente esse imperativo (trágico) da decisão que Woody Allen abandona em sua terceira abordagem, revivida em Meia Noite em Paris.

Focado no cômico latente da experiência humana, seu terceiro palco reúne personagens neuróticas e deslocadas, apaixonadas por remédios e fóbicas da vida, e conquistou a intimidade (e as gargalhadas) da plateia. É a maior fase da obra do autor, quantitativamente, rendendo comédias espirituosas que marcaram época, como Bananas (1971), Annie Hall (1977) e Desconstruindo Harry (1997).

Embora tenha fundamentado a carreira do diretor ao longo dos anos, comediante desde os primeiros passos, a ênfase no cômico já não parece capaz de acrescentar grandes feitos à sua obra. Contando a história de um romancista inédito que sonha em viver na década de 20, cenário dos seus ídolos Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Cole Porter, Woody Allen retoma a abordagem superficial, os clichês previsíveis e as lições de moral (cada vez mais explícitas) de dois dos seus filmes mais insossos, Scoop (2006) e O Escorpião de Jade (2001). Repleto de referências, rasas para os conhecedores e obscuras para os desavisados, Meia Noite em Paris constrói uma década de 1920 caricata, com pinceladas apressadas que muitas vezes apenas ratificam certa mitologia, bastante desgastada, sobre os heróis da década perdida.

Jade Gandra Dutra Martins é professora convidada do curso de cinema da UFSC

(texto publicado originalmente no DC Cultura, 25/06/2011)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

(re) conexão *

porque viver de verdade é sempre ao vivo. aiai.

* Por Jonathan Franzen (trad. Augusto Calil, publicado no Caderno Link).

"Falando numa perspectiva mais geral, o objetivo definitivo da tecnologia, a teleologia da techné, é substituir um mundo natural indiferente a nossos desejos – um mundo de furacões e dificuldades e corações partíveis, um mundo de resistência – por outro mundo que responda tão bem a nossos desejos a ponto de ser, com efeito, uma mera extensão do ser. Permita-me sugerir, finalmente, que o mundo do tecnoconsumismo é, portanto, incomodado pelo amor verdadeiro, restando-lhe como única escolha responder perturbando o amor.
(...)
Um fenômeno relacionado a esse é a transformação do verbo “curtir” (“like”, em inglês) que, graças ao Facebook, deixa de ser um estado de espírito e passa a ser um ato que desempenhamos com o mouse – deixa de ser um sentimento para virar uma opção de consumo. E curtir é, no geral, o substituto que a cultura comercial oferece para o ato de amar. A característica mais notável de todos os produtos de consumo – e principalmente dos dispositivos eletrônicos e aplicativos – é o fato de terem sido projetados para serem imensamente curtíveis. Esta é, na verdade, a definição de um produto de consumo, em contraste com o produto que é apenas aquilo que é e cujos fabricantes não estão concentrados na possibilidade de o curtirmos ou não.
(...)
O simples fato é que a tentativa de ser perfeitamente curtível é incompatível com os relacionamentos amorosos. Mais cedo ou mais tarde, por exemplo, você se verá numa briga horrível, aos berros, e ouvirá saindo de sua boca palavras que você mesmo não curte nem um pouco, coisas que estilhaçam sua autoimagem de pessoa justa, gentil, bacana, atraente, controlada, divertida e curtível. Alguma coisa mais real do que a curtibilidade surgiu de você e de repente você se vê levando uma vida real.
(...)
Subitamente existe uma escolha de verdade a ser feita – não uma falsa escolha de consumidor entre BlackBerry e iPhone, e sim uma pergunta: Será que eu amo esta pessoa? E, para o outro, será que esta pessoa me ama?Não existe a possibilidade de curtir cada partícula da personalidade de uma pessoa real. É por isso que um mundo de curtição acaba se revelando uma mentira. Mas é possível pensar na ideia de amar cada partícula de uma determinada pessoa. E é por isso que o amor representa tamanha ameaça existencial à ordem tecnoconsumista: ele denuncia a mentira.
Isso não equivale a dizer que o amor envolve apenas as brigas. O amor é questão de empatia ilimitada, nascida de uma revelação feita pelo coração mostrando que outra pessoa é tão real quanto você. E é por isso que o amor, ao menos no meu entendimento, é sempre específico. Tentar amar a toda a humanidade pode ser um empreendimento digno, mas, de um jeito engraçado, isso mantém o foco no eu, no bem estar moral ou espiritual do eu. Ao passo que, para amar uma pessoa específica e identificar-se com as lutas dela como se fossem as suas, é preciso abrir mão de parte de si.
Neste caso, o grande risco envolvido é, sem dúvida, a rejeição. Todos nós podemos suportar momentos em que não somos curtidos, pois existe uma gama virtualmente infinita de curtidores em potencial. Mas expor a totalidade do seu eu, e não apenas a superfície curtível, e com isto ser rejeitado, é algo que pode se revelar insuportavelmente doloroso. A perspectiva geral da dor, a dor da perda, da separação, da morte, é o que torna tão tentadora a ideia de evitar o amor e permanecer em segurança no mundo do curtir.
Ainda assim, a dor machuca, mas não mata. Quando levamos em consideração a alternativa – um sonho anestesiado de autossuficiência, incentivado e aprovado pela tecnologia – a dor emerge como produto natural e indicador natural de que estamos vivos num mundo resistente. Levar uma vida indolor equivale a não viver. Até dizer a si mesmo, “Ah, vou deixar para depois esta história de amor e de dor, talvez para depois dos 30 anos” é como resignar-se a passar 10 anos simplesmente ocupando espaço no planeta e consumindo seus recursos. Resignar-se a ser um consumidor (palavra que emprego no seu sentido mais pejorativo).
(...)

"Curtir é covardia", na íntegra, aqui.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

despertando

"O rapaz continuou a narração: ele compreendeu de imediato a rasteira do destino; ela demorou, demora ainda. As pistas da exclusividade já haviam sido fornecidas, inclusive, em outras ocasiões, algumas nem tão agradáveis. Se um dia ele se casasse, lembrou a famosa frase, se um dia abraçasse aquele ato impraticável, e riu, seria apenas com ela, Nina – e ele sabia desde menino. Se alguém ainda pudesse arrancá-la daquela dor e daquele peso, só podia ser ele, Tom - e ela ainda custava a aceitar a oferta. Mesmo tendo dinamitado o futuro duvidando dos antigos acertos do amor, e acreditando naquela sucessão de erros fantasiados de poesia, ainda assim a vida esticara o pé e pimba. Mais maduros, jamais repetiriam o mesmo erro. Porque a vida sempre seria maior, superior a todas as falsas razões; porque o tempo trabalha a favor dos fortes, os raros que torcem e vibram e lutam de verdade, os únicos capazes de desprezar as miudezas, donos de almas que transbordam. Já pisavam a primeira primavera só de margaridas. E logo reduziriam, enfim, aquela penca de achismos, dela e dele, a minúsculos vermes rastejando diante do resto gigante. O resto gigante, maravilhoso, estapafúrdio; o supérfluo indispensável. Porque tentar minar aquele amor era uma luta de formigas e elefantes, e eles eram os elefantes. Porque, pela primeira vez, ele não tinha mais medo algum da esperança. Porque ninguém, absolutamente ninguém, atravessa sete anos, onze meses e 23 dias com uma dor no coração sem procurar a cura no lugar certo."


(velhas letrinhas em...)

terça-feira, 7 de junho de 2011

''A obra de arte tem de ser imperfeita'' *

* Por Arnaldo Jabor

Outro dia, o Nelson Rodrigues baixou em mim. De vez em quando, eu o psicografo. É impressionante como escrevo rápido quando o espírito de Nelson me toma. Escrevo com a liberdade de não ser "eu". Talvez seja por isso que F. Pessoa inventou heterônimos para se sentir livre da cangalha do "eu".
Muitos jovens me perguntam: "Afinal, quem foi o Nelson?"
Não sabem direito. Ficou apenas a vaga lenda de "pornográfico" ou até de "fascista" por ter puxado o saco do ditador Médici (lembram?) para tirar seu filho da prisão. Não conseguiu, mas ganhou a pecha "de direita" por ter criticado futuros mensaleiros e pelegos, os "marxistas de galinheiro", como ele os chamava, pois intuiu claramente, na época, que a ideologia que "absolve e justifica os canalhas" era apenas o ópio dos intelectuais.
Eu mesmo sofri por causa dele. Em 1973, ousei filmar Toda Nudez Será Castigada e dei uma entrevista na Veja em que dizia que "fascismo é amplo: existe fascista de direita e de esquerda também". Pra quê? Os patrulheiros ideológicos mandaram um manifesto ao Jornal do Brasil, onde me esculhambavam indiretamente, dizendo que o sucesso imenso que o filme fazia "não era a missão política do cinema novo". Foi das grandes dores que senti, pois até amigos assinaram o maldito texto, que só não foi publicado porque, um dia antes, os generais tiraram o filme de cartaz, com soldados de metralhadora, levando as cópias dos cinemas porque, dizia o chefe da Censura: "Ele faz apologia do homossexualismo..."
Aí, meus "amigos" comunas desistiram do texto "para não dar razão ao inimigo principal", que era a ditadura. Eu e Nelson éramos "inimigos secundários", para usar a língua de Mao Tsé-tung. Isso é verdade e nunca contei aqui. Doeu, mas já passou.
Aí, o filme voltou a cartaz porque ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim; os generais ficaram com medo da repercussão internacional (imensa) e liberaram meu filme, baseado numa peça do "fascista pornô". Mas a importância de Nelson continua subestimada.
Hoje, a "pornopolítica" tomou conta de tudo e Nelson é que tem fama de "pornográfico" - logo quem: um moralista que corava diante de um palavrão. Nelson é muito mais. Filho do jornalismo policial, formado nas delegacias sórdidas, vendo cadáveres de negros plásticos, metido no cotidiano "marrom" do jornal do pai, Nelson flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa cara, e que ninguém via.
Consideram-no o maior dramaturgo do País, sem dúvida, mas não o colocam no pódio da literatura culta, ao lado de gente como Guimarães Rosa, por exemplo, que o irritava muito: "Jabor, diga-me pelo amor de Deus, qual a profundidade da frase "Viver é muito perigoso"?" Ou: "A gente morre para provar que viveu...?" Nelson implicava com a pose do Rosa.
Uma vez, ele me disse ao telefone que o "problema da literatura nacional é que nenhum escritor sabe bater um escanteio". É luminoso.
Outra vez, ele falou: "Se Deus me perguntar se eu fiz alguma coisa que preste na vida, eu responderei a Deus: "Sim, Senhor, eu inventei o óbvio!""
Sua literatura nos ensina o óbvio e isto é muito profundo numa literatura eivada de engajamentos "corretos" ou de intenções formais rocambolescas. Gilberto Freyre sacou sua "superficialidade profunda", assim como André Maurois entendeu que a genialidade de Proust era justamente "a épica das irrelevâncias..." E isto é muito saudável, num país onde ninguém escreve um bilhete sem buscar a eternidade. Nelson é um escritor contemporâneo.
Até hoje, muita gente não entendeu que sua grandeza está justamente na sincronia com os detritos do cotidiano. A faxina que Nelson fez na prosa é semelhante à que João Cabral fez na poesia.
Nelson baniu as metáforas a pontapés "como ratazanas grávidas" e criou o que podemos chamar de antimetáforas feitas de banalidades condensadas. Suas comparações sempre nos remetem a um "mais concreto". Shakespeare tinha isso, Cervantes, também. E algumas crônicas de Nelson são superiores a muitas peças.
Suas frases famosas jamais aspiravam ao "sublime": "o torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado", "a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil", "em seu ódio ele dava arrancos de cachorro atropelado", "seu peito se encheu de heroísmo como anúncio de fortificante", "a bola seguia Didi com a fidelidade de uma cadelinha ao seu dono", "a virtude é bonita, mas exala um tédio homicida; não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera", "o sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura", "somos uns Narcisos às avessas que cuspimos na própria imagem".
Ele me dava lições de arte e literatura: "Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. A partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão elitista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões. E aí vem a grande verdade: "A obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita". Isso. Contemporâneo e minimalista, via, como Oswald, que a poesia está nos fatos, no vatapá no outro e na dança - "o que estraga a obra de arte é a unidade".
A lição política de Nelson é: o Brasil não se salvará com planos messiânicos ou ideias gerais de "epopeias de Cecil B. de Mille", sejam elas epopeias operárias ou epopeias neoliberais.
Nelson, sem cultura política nenhuma, profetizou que os atos "indutivos", as providências parciais eram muito mais importantes que generalidades utópicas e "dedutivas". O "óbvio ululante" é limpar a casa e cuidar do detalhe, do enxugamento do Estado, "chupando a carótida dos chefes das estatais como tangerinas" quando se mostrarem ladrões ou favorecendo correligionários, como vemos todo dia.
Nossa opinião pública está muito mais informada hoje, mas ainda é precária e desinformada. Como ele dizia: "Consciência social de brasileiro é medo da polícia". Até hoje.


(Publicado em O Estado de São Paulo, 07/06/2011)

sexta-feira, 3 de junho de 2011

a vitória do oxigênio

Tom compreendeu cada uma das palavras escorregadias, assim como aceitou com tranqüilidade as lágrimas presas em esconderijos pela casa. Alguns muitos tempos atrás, Nina o enxergara da profundidade à superfície e mesmo assim decidira permanecer; aquela era a hora, então, de retribuir a delicadeza com que ela tratara todos os dramas e ensaios até a súbita explosão da gota d'água, justamente onde as névoas se concentravam. Quando as lágrimas se tornaram maiores e mais volumosas, exibidas num excesso na cama, resistentes a soluços e fungadas, levantou a namorada com carinho e olhou-a com toda calma do mundo. Nunca a vira chorar, disse. Nunca a vira chorar embora tanto já tivesse visto na vida, e tantas coisas que motivariam o choro até mesmo dos mais nobres, mais capazes, mais corajosos, continuou. Os raros - sussurrou. Era verdade, ela pensou; diante do choque das lágrimas inéditas daquele jantar de quase noivado, ignorou sua própria incapacidade diante dele. Era saudade do pai, mentiu, lamentando em seguida: continuava se sentindo incapaz de dizer a verdade. Já começava a delimitar, no entanto, os contornos daquele fato imprevisto, desprezado por ambos em suas ansiedades: eles não eram mais os mesmos. E talvez algo ali já fosse irrecuperável.


(velhas letrinhas blá blá blá...)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Paraíso perdido *

Prestes a completar 90 anos, romance de estreia de Scott Fitzgerald reconstrói a esperança e o fracasso de uma geração desiludida


Amory Blane cresceu entre taças reluzentes e festas glamourosas. Seleciona amigos em confrarias restritas à alta roda, debate assuntos polêmicos com a arrogância incansável dos imaturos, esnoba escolas exclusivas e faculdades que formaram presidentes. Retrato de uma geração deslumbrada com as infinitas possibilidades de ascensão social, não perde a fé no sonho americano e, sobretudo, no próprio futuro.

Este Lado do Paraíso (Cosac Naify, 335 pgs., R$ 69), porém, não se limita (apenas) à elaboração de personagens desesperadas por desfrutar a vida até a última gota – de álcool e prazer. Oscilando entre a euforia e o desespero, refaz a curva trágica de madrugadas plenas de dissipação, típicas da era do jazz, que culminam, sempre, em manhãs violadas por ressacas grandiosas.

Repleto de expectativas borbulhantes, o jovem Amory acaba vítima dos próprios delírios de ascensão. O excesso de ofertas e autoconfiança torna-o incapaz de aprofundar e amadurecer qualquer experiência, minando o futuro glorioso. Seu fim é o destino de boa parte da geração que viveu aqueles tempos de fortuna e modernização: pobre e solitário, sem diploma, sem futuro e com o frigobar vazio.

Sucesso absoluto de crítica e público, Este Lado do Paraíso vendeu inacreditáveis 50 mil exemplares, definiu uma época, disseminou gírias e ainda transformou seu autor em pop star. Com os bolsos cheios de dólares, Fitzgerald conseguiu casar-se com uma excêntrica dama da alta sociedade, Zelda, alcançou as colunas sociais e conquistou a tão desejada elite norte-americana. Era o passaporte que faltava para encarnar, ele mesmo, a falência do sonho americano tão bem retratada em sua ficção – morreu aos 44 anos pobre e solitário, alcoólatra e esquecido, como suas tristes personagens.

Mais do que contar a história do menino que prometia conseguir se tornar tudo aquilo que almejasse, analogia da prosperidade da nação americana antes da quebra da Bolsa de Valores de 1929, Fitzgerald evoca a decadência de uma geração que acorda miserável do sonho dourado – sem dinheiro e sem valores. A transformação das infinitas promessas da “nação mais poderosa do mundo” em uma espécie de desespero que tudo congela não apenas inaugura a ficção do autor como permanece como elemento central de sua poética.

Se prosseguiu abordando o tema durante toda a sua trajetória ficcional, como em Belos e Malditos (1922) e Suave É a Noite (1934), desenvolvendo um estilo mais amadurecido, embora com o mesmo frescor, é em O Grande Gatsby (1925) que explora os desdobramentos mais cruéis da escalada social. Seu herói, Jay Gatsby, mergulha tão fundo na ilusão do sonho americano que chega a morrer por ela. No fim das contas, este parece ser um chamado legítimo entre os protagonistas do autor, porta-voz da “geração perdida” da literatura americana. Afinal, como repete Amory Blane, “não quero repetir minha inocência. Quero ter o prazer de voltar a perdê-la”.


As linhas da decadência

Estreia de Scott Fitzgerald no universo dos romances, Este lado do paraíso inaugura também um olhar exclusivo sobre a derrocada dos heróis da era do jazz, assinatura de sua poética. Os descaminhos da desilusão americana estão presentes em todos os romances do autor, retratados sempre com frescor e profundidade.

Belos e Malditos (1922) – Segunda obra, conta a vida cintilante e irresponsável de Anthony Patch, herdeiro milionário formado em Harvard, e sua bela e fútil Gloria. A narrativa amadurece muitos temas da estreia: ascensão social súbita, desperdícios em noitadas intermináveis, paraísos artificiais, bebedeiras infindáveis, sonhos despedaçados e muitas, incontáveis extravagâncias.

O Grande Gatsby (1925) – Considerado por muitos a obra-prima do autor, condensa na trajetória duvidosa de Jay Gatsby a grande curva trágica da geração perdida. De garoto pobre a contrabandeador da lei seca, o protagonista arma-se de dinheiro e mistério para reconquistar a hesitante Dayse, namorada de adolescência que lhe trocou pelo milionário Tom Buchanan.

Suave é a noite (1934) – Tristemente autobiográfico, narra a ascensão e derrocada do alcoólatra Dick Diver, espécie de prodígio maldito, que abandona a medicina por uma vida de dissipação ao lado da mulher Nicole Diver, louca e milionária – livremente inspirada em sua mulher Zelda Fitzgerald. O autor levou oito anos para conseguir concluir o romance, dividido entre a ficção e constantes rehabs para amenizar o alcoolismo.

O Último Magnata (1941) – Obra póstuma, alimentada pelas derradeiras experiências profissionais do autor, como roteirista de cinema. A história persegue a trajetória do produtor Monroe Stahr (baseado em Irving Thalberg, antigo chefe da MGM), focalizando a encantadora Hollywood da década de 30. Fitzgerald morreu subitamente, de ataque cardíaco, enquanto ainda trabalhava nos últimos capítulos. A obra foi finalizada pelo seu amigo e editor, Edmund Wilson.


(texto originalmente publicado no DC Cultura, 22/05/2011)