domingo, 29 de março de 2009

smell like teen spirit

Um pouquinho do frescor de Suave é a noite, de Scott Fitzgerald, relido onze vezes. O romance abastece minha cabeceira há dez anos, desde que um calouro salvador sugeriu a leitura.

"Na escura grua do táxi , fragrante com o perfume que comprara em companhia de Nicole, ela tornou a encostar-se, grudando-se nele. Dick beijou-a sem prazer. Sabia que ali havia paixão, mas não havia sombra disso nos olhos dela, nem na boca; só uma leve espuma de champanhe no hálito. Ela se encostou mais, desesperada, e mais uma vez ele a beijou e gelou com a inocência do beijo dela, com o olhar que no momento do contato via atrás dele a escuridão da noite, a escuridão do mundo. Ela ainda não sabia que o esplendor é uma coisa do coração; assim que compreendesse isso e se fundisse na paixão do universo, ele poderia tomá-la sem perguntas nem arrependimentos".

segunda-feira, 23 de março de 2009

Pra você, de volta.

Quando vi você pela primeira vez, não havia tantas dores, nem tanto susto, nem tantas marcas. Um futuro inteiro, redondo e completo, grandioso, insinuava-se no horizonte da universidade. Não nos gostamos de primeira, é fato; nem poderíamos, considerado o indiscreto deboche. Éramos iguais, já ali, mas ainda nem desconfiávamos da benção. Não sei precisar as palavras de estréia, talvez um olá baixinho pelos corredores, ou uma coleção de olhares enviesados em meio aos conteúdos tediosos das aulas. Você me detestava desde a época do colégio, aquela metida, eu nem vislumbrava sua presença - quem? Você odiava acordar cedo, eu sempre chegava atrasada. Você se sentava quieto nas escadas, rodeado pela meia dúzia de sempre. Eu desfilava pra lá e pra cá, ansiosa por enredos e aconchego, órfã de tantas coisas. Você gostava de cinema americano, literatura pop e rock contemporâneo. Eu adorava filmes europeus, clássicos brasileiros e canções sessentinhas. Um dia qualquer, porém, entre uma conversa e outra de corredor, reparei o ritmo pausado e calmo das suas frases, o sorriso de canto, um tanto oblíquo, receoso de exibições públicas, a mania de falar e falar e falar, embora apenas a um punhado de raros merecedores, e descobri: você já era meu irmão.

Como num raríssimo passe de mágica, você chegou à mesma conclusão. Iniciamos, então, uma rotina própria: capuccinos soletrados, Forgotten Boys ao lado da caixa de som, olhares enviesados regados a coca-cola, polêmicas sobre canções e filmes, voltinhas desnorteadas na Lagoa, aulas molhadas de inglês, revistas importadas, papéis acumulados, idéias estapafúrdias - aquela sintonia afinada e fresca, nossa companheira até hoje. Aquela inclinação a qualquer, qualquer mesmo, discussão que não leve a lugar algum: será que mais alguém guarda tanto medo de enlouquecer como nós? Quando tudo confirmava o bem, sólido como pouco ao redor, o pior aconteceu: a vida ruiu, as pistas desapareceram, o caminho encolheu. Às vezes a vida carrega a gente. Às vezes a correnteza vence o nado, mesmo em suas mais corajosas e destemidas braçadas. Você estava ali, segurando as minhas mãos, cobrindo de permanências quando o mundo me oferecia apenas a instabilidade de um furacão. Eu já sabia que podia contar com você. Eu já encontrava você ali, comigo, em mim, como nunca encontrei outros e outras. E nem mesmo aquele miserável ano devastou nossa rotina: já brigávamos por bobagens, já lutávamos pela certeza da autoria de certos filmes, já nos entendíamos apenas com dois silêncios, mesmo rasos e curtos. Você foi a única pessoa com quem consegui rir naquela semana escura. Você foi, sem sombra de dúvida, o único que assistiu àquele lamento desconcertado.

Então você foi embora, confirmando a tese central do ano das dores mais imundas. Deixou tudo em troca de um sonho que nunca entendeu bem qual era, e que eu sempre tive a delicadeza de jamais exigir detalhes. Sabemos: Tout le monde a cherché quelque chose un jour // Mais tout le monde ne l'a pas trouvé. Eu compreendia você, sem mais. Você me dava as mãos, num gesto tão espontâneo quanto discreto, à sua maneira. Como se não pudesse ser de outro jeito, como se já estivéssemos atrasados naquele encontro. Mesmo longe, seis anos diante da maior distância, jamais nos perdemos. Você me salvou numa madrugada desértica, eu livrei você das mesmidades do mundo. Trocamos e-mails, idéias, almas, histórias, aprontos inconfessáveis. Você sempre foi minha única censura – ao menos a única que escuto, com paciência. Acho que sempre fui a única que sabe quem você é, de verdade. A única – e espero que isso fique bastante claro, de uma vez por todas, para as tantas que insistem em perturbar nossa exclusividade.

Ouvi-lo falar, mesmo as besteiras mais descabidas, mesmo as teimosias mais infundadas, mesmo as defesas das canções mais apelativas, mesmo as habituais ironias sobre mim mesma, será sempre a suspensão de uma solidão inequívoca e persistente. Porque nada mudou depois dos seis anos: as briguinhas de crianças, os embates que atormentam tantas madrugadas, a cumplicidade absoluta – tudo aqui, entre nós. Continuamos perseguindo a mesma paisagem, quase sempre uma paisagem que só a gente conhece, a salvo dos olhares dos outros todos. Continuamos incapazes de explicar nossa fraternidade especial e gratuita, espontânea como tudo o que é de verdade, a salvo da crueza do mundo. Eu não tenho você como irmão, mocinho. Há dez anos eu tenho um irmão.