quinta-feira, 21 de julho de 2011

Pena de Ouro **

O maior dramaturgo brasileiro encontrou nas redações de jornais o farto material humano que serviu de matéria-prima para sua obra



POR JADE GANDRA DUTRA MARTINS

No ano de comemoração do centenário de nascimento de Nelson Rodrigues, uma série de exposições, homenagens, eventos e releituras amplia o debate sobre sua obra, atraindo fãs e especialistas. A vasta cobertura tenta contemplar os múltiplos papéis abarcados pelo autor na cultura brasileira do século XX: cronista, contista, romancista, crítico, dramaturgo. Constantemente associado às frases polêmicas e aos dramas rocambolescos sobre traição e desespero, seu legado mais popular, o escritor paira hoje como uma das personagens mais influentes do Brasil moderno. Uma faceta definidora da sua trajetória, porém, ainda segue menosprezada: o jornalista.

Nelson Rodrigues ainda nem sonhava em inventar o teatro brasileiro moderno quando concluiu, com um ponto de exclamação, sua primeira matéria como repórter profissional. Na verdade, jamais assistira a uma peça. Com 13 anos recém-completados, vestia calças curtas, devorava com ansiedade todos os folhetins que lhe caíam em mãos e cismava com o tamanho da própria cabeça – para ele, um cabeção. Pernambucano no registro de identidade, e carioca em todas as outras instâncias, recebeu o primeiro contracheque já na cidade maravilhosa, trabalhando para o pai Mário Rodrigues no jornal da família, o famoso A Manhã.

O matutino inaugurou a trajetória de superlativos que marcaria para sempre o clã dos Rodrigues: havia sido idealizado, concebido, montado e inaugurado em apenas 25 dias. Mário Rodrigues, um bom capitalista, intimou os filhos à labuta. À frente de todo o conteúdo político, local perfeito para alimentar debates intensos e controvérsias variadas, encaminhou Mário Filho à crítica de arte e dividiu a editoria de polícia entre Milton e Nelson. Roberto preferiu o nanquim, e se responsabilizou pelas ilustrações principais das edições. Confirmando a tendência hiperbólica daquela família de 14 filhos, em apenas um ano A Manhã já era o matutino mais vendido do país.

A política editorial era diversificada, atenta às preferências do público: além de publicar diariamente capítulos de romances famosos, como o clássico Crime e Castigo, de Dostoievski, formando uma geração de leitores, A Manhã priorizava matérias policiais, notas sobre suicídio e relatos de dramas passionais que impressionavam os corações sensíveis. Em uma época em que o ofício de jornalista servia como atalho legítimo – e lícito – para se alcançar status social (sim, essa época existiu), os principais periódicos do país descartavam a seriedade das reportagens investigativas ou políticas para mergulhar sem medo na narração de crimes sangrentos e pactos obscuros.

Descrevendo os casos mais chocantes daquele Rio de Janeiro repleto de bondes e piteiras, Nelsinho compensava a pouca experiência abusando de adjetivos poderosos e frases enfeitadas de lirismo. Não havia qualquer preocupação com a verdade, afinal de contas, naqueles tempos, objetividade era quase sempre um recurso exclusivo dos medíocres. Quem dominava de fato a máquina de escrever executava o ofício com o requinte do ficcionista que seleciona a palavra exata para expressar os sentimentos mais subterrâneos. E nas matérias policiais do menino repórter, os fatos eram sempre subordinados à escrita, jamais o contrário – dogma máximo do jornalismo pretensamente idôneo e asséptico que começaria a vigorar no Brasil a partir da segunda metade do século XX.

Era pobre e vivia uma vida miserável.
O ordenado que o emprego lhe proporcionava era insuficiente e não bastava para dar à pobre jovem o mínimo conforto. Sofria as mais pungentes necessidades. Vivia atormentada por cruéis privações.
Entretanto, como era forte e animosa, não se desesperava.
Nos momentos culminantes da desventura, procurava alívio na esperança florida duma vida melhor. Seu espírito era sadio e novo. Não se abatia. Pelo contrário. Quando a desdita golpeava-o, enchia-se de novas forças e da mais robusta mocidade. E as dores de tão habituais e comuns acabaram por revigorá-lo e enrijecê-lo.*

(A Manhã, 19/05/1928)

As primeiras linhas do currículo de Nelson Rodrigues foram preenchidas por três tipos de texto. As grandes matérias, que ocupavam uma página inteira, como o exemplo anterior, eram quase resenhas fantasiosas sobre crimes. Inventava-se muito: detalhes, cenas, pensamentos. O objetivo era arrebatar o leitor, jamais apenas informá-lo sobre os acontecimentos. As do segundo tipo limitavam-se a abordar, com economia, o tema noticiado, sem tecer relações mais profundas do que as já organizadas pelo repórter no ato da escrita. Por último, filé da época, as notas sobre suicídio. Acredite, todos os importantes veículos impressos mantinham então um espaço privilegiado para a exposição dos mais recentes suicídios, contrariando completamente o modelo atual, que pede silêncio, quando não omissão, no tratamento dessas situações.

Maluquices de sucesso


Quando Mário Rodrigues abandonou a casa e a prole no Recife aos cuidados da mulher Maria Esther, sozinha e desempregada, para procurar a sorte no Rio de Janeiro, nada menos do que a capital do Brasil, todo mundo achou que ele estava ficando louco. Pois em 1928, quando decidiu entregar A Manhã para Agripino Nazareth, deixando órfãos milhares de fãs encantados com os famosos textos inflamados do editor, todo mundo teve certeza de que ele estava, sim, completamente maluco.

A reviravolta surpreendente acabou se revelando o caminho mais adequado. Apenas seis meses depois do adeus, Mário Rodrigues fundou um novo jornal, A Crítica, novamente no Rio de Janeiro. Com talento para polemizar debates quentes da política, e cada vez mais ácido com os inúmeros inimigos, o vespertino alcançou a marca de 130 mil exemplares vendidos. E Mário Rodrigues era, novamente, o dono do jornal mais vendido do país, agora com uma nova estrela no currículo: a criação de um modelo renovador que ajudou a construir os tempos de ouro da imprensa brasileira.

A Crítica durou apenas dois anos, até ser empastelado no mesmo dia que Getúlio Vargas tomou a presidência do país, no golpe de estado de 1930. Em seu curto trajeto, porém, o vespertino acumulou feitos dignos de protagonista: solidificou o prestígio do dono, convincente no papel de maior jornalista do seu tempo; promoveu amplos debates sobre a política ditatorial do Brasil da época, expondo opiniões firmes que somente a mais imponente das teimosias seria capaz de produzir; amplificou o poder da crítica de arte, comentando as produções contemporâneas; engrandeceu a cobertura policial, apostando em um misto de literatura e humor, com histórias que encantavam até os leitores mais desconfiados. Como se não bastasse, A Crítica ainda inventou o jornalismo especializado em futebol, inaugurando a era das entrevistas com jogadores e compondo todo um vocabulário próprio, em voga até hoje (a expressão fla-flu, por exemplo, saiu de suas páginas).

A depredação da sede, fruto de rixas explicitadas em editoriais incendiários, liquidou não apenas A Crítica, mas também a última geração romântica da imprensa. A imagem de jornalistas heróis driblando brancos criativos em busca da máxima inspiração foi sendo pouco a pouco substituída pelos profissionais e seus cadernos de fontes exclusivas, para quem valioso mesmo é oferecer notícia em primeira mão, não estilo refinado. No auge desta transformação, os Rodrigues partem para O Globo, dirigido por Roberto Marinho, amigo da família, em 1931. É o primeiro passo para o menino Nelsinho transformar-se, definitivamente, em Nelson Rodrigues.

Nasce um autor

Nelson Rodrigues permaneceu no jornal O Globo durante uma década. É lá que dá seus primeiros passos na cobertura esportiva, elaborando perfis literários com os gigantes da bola, e aprimora a redação das já clássicas matérias policiais, agora um tantinho (só um tantinho) mais econômicas em devaneios e invenções. Já adulto, o jornalista começa a burilar seu estilo, compondo um arsenal de referências que seriam para sempre marcas registradas de sua poética – no teatro, nos contos, nas crônicas, nos folhetins e na vida.

O amor não tem lógica. Escolhida a mulher que lhe faça vibrar o teclado dos nervos, o homem é um autômato e o mundo fica pequeno se lhe falta o convívio caricioso daquela de vago encanto que é a mulher escolhida pelo passional.
Então, a morte é o último apelo.
O amante, de uma união legalizada pelos códigos, ou simplesmente pelo pacto das almas, sempre indissolúveis, procura o último sono como recurso extremo do seu coração agitado, mas não deixa o objeto do seu deslumbramento para a delícia dos outros homens, que ele passa a odiar coletivamente, sem compreender, em seu delírio, a teoria dos filósofos simplistas, que afirmam existirem muitas mulheres, e que todas as mulheres são iguais.*

(O Globo, 12/08/1931)

A reportagem “Eu não disse que havíamos de morrer juntos?” mais parece um ensaio, se comparada ao padrão seco do jornalismo atual. Mas o estilo que Nelson Rodrigues desenvolve nessas folhas policiais é exclusivo, intenso e cheio de particularidades, como as paixões que narrou em seu teatro (atraindo e repelindo o público, na mesma medida). Investe pesado nos adjetivos, característica já da sua escrita de menino; pontua com exclamações e reticências, rejeitando qualquer precaução; tematiza a dor do amor e o desespero da aflição, cantando às almas doentes, de excesso ou de falta; repete as mesmas metáforas de forma obsessiva e contumaz, afinal se assumia, ele próprio, “flor de obsessão”. Não demorou muito para que sua autoria, já identificada por milhares de leitores, atraísse uma nova peripécia, digna de folhetim.

Em O Globo, transformou-se no coringa da redação, escrevendo desde críticas de óperas até histórias infantis – às vezes ainda se passava por tradutor, para garantir um trocado extra. A alta exposição apresentou Nelson Rodrigues ao grupo de intelectuais e artistas da zona sul carioca, onde acumulou algumas polêmicas e muitos amigos famosos. Um deles reconheceu de imediato o seu potencial extraordinário como autor: era Samuel Weiner, jornalista de grande influência na época, getulista de carteirinha e coração. Sem perder tempo, convidou o repórter para compor a equipe daquele que viria a ser o jornal mais moderno até então, o lendário Última Hora.

Nelson Rodrigues já era um dramaturgo controverso, acusado, ao mesmo tempo, de pai do teatro brasileiro moderno e insuperável tarado da dramaturgia nacional. A instável trajetória no tablado rendeu inúmeros textos censurados e, claro, nenhuma moeda no bolso. Sempre acossado pelo imperativo do dinheiro, já que sustentava parte da família Rodrigues após a morte do patriarca – e dinheiro não era o problema para Weiner, famoso por oferecer salários muito acima do mercado –, aceitou a proposta, com o aval do próprio Roberto Marinho, concorrente do novo jornal (em negócios e ideologia), e assinou contrato em 1951.

Se o convite era irrecusável, o projeto pensado por Weiner conseguia ser mais rodrigueano do que o próprio Nelson Rodrigues: uma coluna diária, misto de crônica e conto, baseada em alguma reportagem do jornal, de preferência da editoria policial. Iria se chamar “Atire a primeira pedra”, ideia do chefe, logo refutada pelo autor: por que não “A vida como ela é...”? Ninguém recusou. Como Nelson Rodrigues já era um ficcionista, afinal escrevia teatro e começara a publicar folhetins, a ordem de se inspirar em fatos reais só seria acatada da primeira vez. A partir do segundo texto, seria tudo criação. A mais legítima criação rodrigueana.

“A vida como ela é...”, com reticências mesmo, como convinha à tradição hiperbólica, encantou os leitores desde a primeira maiúscula. Em qualquer bonde em circulação no Rio de Janeiro era possível encontrar passageiros deliciados com as artimanhas da seção. Alguns em lágrimas, outros às gargalhadas. A coluna virou mania nacional, rendendo fama ao autor e suscitando debates em mesas de bar, estádios de futebol, almoços em família, passeios no parque e tardes na praia. Uma combinação rara de ingredientes revela o segredo do sucesso: enredos bombásticos, protagonizados por adúlteros em chamas, quase sempre mulheres; linguagem inovadora, que aposta em simplicidade e coloquialismo sem perder a sofisticação.

As 2 mil colunas, publicadas ao longo de dez anos, são um caldeirão de estilo. Suas frases de efeito conquistaram o público de imediato, sempre pontuadas por exclamações e exageros típicos das paixões desenfreadas. Suas expressões, repetidas ao infinito, reproduziam com graça o linguajar das ruas, e suas personagens se debatiam entre um e outro “bye, bye”, “assim assim”, “batata” e tantos mais. Ainda havia aqueles nomes tão característicos: Gusmão, Glorinha, Palhares, Doutor Borborema – mais tipos do que personagens, até hoje associados à obra do autor. Para completar, vez ou outra o cronista acionava os genes do pai, bradando polêmicas morais (“Nem toda mulher gosta de apanhar, apenas as normais”), políticas (“O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”) e culturais (“Os jovens têm todos os defeitos dos adultos e mais um, a imaturidade”).

Nelson Rodrigues está inteiramente ali: nas mulheres devassas que se entregam ao primeiro desconhecido da esquina; nas vizinhas moralistas sempre à espera do pecado alheio; nas tramas repletas de surpresas, reviravoltas e golpes do destino; na construção criativa e debochada do carioca way of life, uma invenção sua, afinal de contas; na magnitude oferecida ao trivial, movimento pioneiro da ficção brasileira. “A vida como ela é...”, inspirada nas matérias policiais que escreveu desde menino, mudou sua vida profissional, tornou-o um autor consagrado, invadiu seu teatro, ganhou as ruas. E ensinou a nós, brasileiros de carteirinha como ele, que espiar pelo buraco da fechadura é sempre mais gostoso.

* Trechos retirados do livro O baú de Nelson Rodrigues: Os primeiros anos de crítica e reportagem (1928-35), editora Companhia das Letras, 301 páginas.

** Artigo publicado na Revista Lounge deste mês (jul-ago 2011).