quinta-feira, 12 de maio de 2011

quase só medo

Olhou para a bela casa azulejada e não conteve o suspiro: alguns sentimentos jamais deveriam passar da esperança à realidade. Ainda havia uma dor miserável ali, impura e resistente, capaz de enferrujar as expectativas mais legítimas. O mesmo medo paralisante das outras duas tentativas, impróprias, rasgadas, inacabadas. Mas sempre lhes fora mais conveniente engrossar os escudos e bloquear as fechaduras. Evitar o futuro com corridas estapafúrdias, oferecer as mãos cheia de limo para escapar do coração. Assumir o palhaço trágico, transformando em blague experiências indizíveis, compartilhar a graça para não sufocar de nada, velhos senhores de trevas tão caprichosas. Olhou a bela casa azulejada e não conteve a coragem: tentaria de verdade aquela vez. E se estavam ali, remodelados como em sonhos distantes, é porque precisavam vestir aquelas plumas.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

c'est interdit penser à autre chose

Lado a lado, e com as taças já pela metade, tentaram retomar assuntos abandonados na noite anterior. Tom estava seguro, sem dúvida, mas em nenhum momento recorreu à violência enrustida com que conduzia com destreza as conversas de juventude. Mesmo mais suavizado, colorido agora nas tintas do sépia, constrangia com o oferecimento daquele vasto cardápio de confiança, exatamente como ela o violentara no último jantar, pela tranqüilidade com que atravessara cada dúvida no sofisticado restaurante. Nina, como ela própria já imaginava, não conseguia mais atordoá-lo com assertivas, muito menos extorquir as palavras certas com pulso firme e decidido; a noite passada fora demasiadamente promissora para que brincasse de exercitar valentias. Era como se tudo tivesse adquirido certa gravidade, mais uma carga de definitivo, e não gostaria de autorizar qualquer borrão às linhas daquela reescrita. Era difícil para ambos aceitar tamanha entrega, um diante do outro, driblando dores e humilhações, camuflando em palavras bem escolhidas tudo o que não conseguiam iluminar, brincando de voltar ao passado quando desejavam apenas revolver o futuro. Imaginavam-se, no entanto, cúmplices também naquilo, e isso tornava o sofrimento um pouco mais leve.

terça-feira, 10 de maio de 2011

permanências

Degustaram a sobremesa envolvidos num silêncio equilibrado entre a esperança e o sossego; como nos velhos tempos, bastavam-se, e compreendiam-se, e distraíam-se, apenas. Ao fim da refeição, sabiam ambos, a mais significativa das intimidades já fora resgatada, e nem todas as famílias, conversas e cidades, e nem todos os dias, luas e passados conseguiriam explicar a facilidade da restauração. Para Nina, Tom soava menos selvagem, menos seguro, muito mais delicado, e era bom encontrá-lo assim. Menos dramático; mais atencioso e verdadeiro. A Tom, Nina parecia mais madura, mais calma, muito menos convicta, novos contornos capazes de aproximá-los ainda mais, como testemunhas da vida um do outro, do que quiseram ser e não conseguiram, do que desejaram ter e não encontraram à venda, do que sonharam se transformar e enfim tiveram coragem para se tornar. Já não possuíam qualquer dúvida sobre o próximo encontro, seria o mais breve possível, como escancarou o convite: almoçariam juntos no dia seguinte? Claro, e Nina não conteve o sorriso largo, enquanto mastigava a última raspa de chocolate do doce. O excesso de “experiência concentrada” até a turma percebia, ele continuou, o que desejava saber, no entanto, talvez confirmasse a única sentença imune às tempestades do verão: alguém depois dele lhe jurara não morrer?

segunda-feira, 9 de maio de 2011

canções de outono

"Olhou bem para o pai, parado em sua frente, e reparou triste naquele perfil bonito que agora apenas insinuava o retrato de outrora. Viu-o cheio de falhas, na memória, na lógica, nos sentimentos, escondido por trás de um monte de títulos que afinal não serviram para muita coisa. Não podia mais obtê-los, já não podia sequer usufruir os já existentes. Tão inteligente e tão respeitado; tão incompreensível em sua doença inédita. Pensou pela primeira vez em desistir; a distância metafórica do pai lhe dizia que chegara longe demais com aquela visita forçada, e era realmente muito difícil caminhar por entre as curvas de uma loucura tão estranhamente lúcida como aquela. Sentia-se sem munição, a não ser aquelas que vêm do coração, e estas, geralmente, atingem sempre alvos interditados ou impróprios. Baixou a cabeça, deixando escorrer o lenço cor-de-rosa, e cobriu os olhos com a mão. Só conseguiu sair de si ao observá-lo devolvendo o lenço ao seu cabelo agora trançado, enquanto ouvia, baixinho em seu ouvido: então conseguira encontrar alguém à sua altura? Encarou-o, mais esperançosa do que nunca, e abraçou-se nele, deixando-se morrer ali, naquele instante. Teria dado um pedaço de seu talento, o mais especial, para escutar do pai qualquer resto de voz àquela tarde. Enlaçaram-se uma outra vez, e ela só aceitou deixar o quarto após ouvir numa segunda frase mal costurada que ele faria de tudo para melhorar o quanto antes. Ela precisava dele, afirmou, muito mais do que ele dela, pensou, sozinha. Antes de fechar a porta, devagarzinho, com cuidado, ainda observou o arrastar violento das cortinas, vedando novamente o quarto de qualquer contato externo".



(velhas letrinhas em correção)