segunda-feira, 9 de maio de 2011

canções de outono

"Olhou bem para o pai, parado em sua frente, e reparou triste naquele perfil bonito que agora apenas insinuava o retrato de outrora. Viu-o cheio de falhas, na memória, na lógica, nos sentimentos, escondido por trás de um monte de títulos que afinal não serviram para muita coisa. Não podia mais obtê-los, já não podia sequer usufruir os já existentes. Tão inteligente e tão respeitado; tão incompreensível em sua doença inédita. Pensou pela primeira vez em desistir; a distância metafórica do pai lhe dizia que chegara longe demais com aquela visita forçada, e era realmente muito difícil caminhar por entre as curvas de uma loucura tão estranhamente lúcida como aquela. Sentia-se sem munição, a não ser aquelas que vêm do coração, e estas, geralmente, atingem sempre alvos interditados ou impróprios. Baixou a cabeça, deixando escorrer o lenço cor-de-rosa, e cobriu os olhos com a mão. Só conseguiu sair de si ao observá-lo devolvendo o lenço ao seu cabelo agora trançado, enquanto ouvia, baixinho em seu ouvido: então conseguira encontrar alguém à sua altura? Encarou-o, mais esperançosa do que nunca, e abraçou-se nele, deixando-se morrer ali, naquele instante. Teria dado um pedaço de seu talento, o mais especial, para escutar do pai qualquer resto de voz àquela tarde. Enlaçaram-se uma outra vez, e ela só aceitou deixar o quarto após ouvir numa segunda frase mal costurada que ele faria de tudo para melhorar o quanto antes. Ela precisava dele, afirmou, muito mais do que ele dela, pensou, sozinha. Antes de fechar a porta, devagarzinho, com cuidado, ainda observou o arrastar violento das cortinas, vedando novamente o quarto de qualquer contato externo".



(velhas letrinhas em correção)

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