quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Contardo Calligaris, gênio*


A necessidade de mostrar ao mundo um semblante feliz é uma das grandes fontes de infelicidade

UMA AMIGA inventou um jeito de curtir sua fossa. Depois de um dia de trabalho, de volta em casa, ela se enfia na cama, abre seu laptop e entra no Facebook.
Ela não procura amigos e conhecidos para aliviar o clima solitário e deprê do fim do dia. Essa talvez tenha sido a intenção nas primeiras vezes, mas, hoje, experiência feita, ela entra no Facebook, à noite, como disse, para curtir sua fossa. De que forma?
Acontece que, visitando as páginas de amigos e conhecidos, ela descobre que todos estão muito bem: namorando (finalmente), prestes a se casar, renovando o apartamento que sempre desejaram remodelar, comprando a casa de praia que tanto queriam, conseguindo a bolsa para passar dois anos no exterior, sendo promovidos no emprego ou encontrando um novo "job" fantasticamente interessante. E todos vivem essas bem-aventuranças circundados de amigos maravilhosos, afetuosos, alegres, festeiros e sempre presentes, como aparece nas fotografias postadas.
Minha amiga, em suma, sente-se excluída da felicidade geral da nação facebookiana: só ela não foi promovida, não encontrou um namorado fabuloso, não mudou de casa, não ganhou nesta rodada da loto. É mesmo um bom jeito de aprofundar e curtir a fossa: a sensação de um privilégio negativo, pelo qual nós seríamos os únicos a sofrer, enquanto o resto do mundo se diverte.
Numa dessas noites de fossa e curtição, minha amiga, ao voltar para sua própria página no Facebook, deu-se conta de que a página não era diferente das outras. Ou seja, quem a visitasse acharia que minha amiga estava numa época de grandes realizações e contentamentos. Ela comentou: "As fotos das minhas férias, por exemplo, esbanjam alegria; elas não passaram por nenhum photoshop, acontece que são três ou quatro fotos "felizes" entre as mais de 500 que eu tirei".
Logo nestes dias, acabei de ler "Perché Siamo Infelici" (porque somos infelizes, Einaudi 2010, organizado por P. Crepet). São seis textos de psiquiatras e psicanalistas (e um de um geneticista), tentando nos explicar "por que somos infelizes" e, em muitos casos, por que não deveríamos nos queixar disso.
Por exemplo, a infelicidade é uma das motivações essenciais; sem ela nos empurrando, provavelmente, ficaríamos parados no tempo, no espaço e na vida. Ou ainda, a infelicidade é indissociável da razão e da memória, pois a razão nos repete que a significação de nossa existência só pode ser ilusória e a memória não para de fazer comparações desvantajosas entre o que alcançamos e o que desejávamos inicialmente.
Não faltam no livro trivialidades moralistas sobre o caráter insaciável de nosso desejo ou evocações saudosistas do sossego de algum passado rural. Em matéria de infelicidade, é sempre fácil (e um pouco tolo) culpar a sociedade de consumo e sua propaganda, que viveriam às custas de nossa insatisfação.
Anotei na margem: mas quem disse que a infelicidade é a mesma coisa que a insatisfação? E se a infelicidade fosse, ao contrário, o efeito de uma saciedade muito grande, capaz de estancar nosso desejo? Que tal se a infelicidade não tivesse nada a ver com a ansiedade das buscas frustradas, mas fosse uma espécie de preguiça do desejo, mais parecida com o tédio de viver do que com a falta de gratificação? Em suma, você é infeliz porque ainda não conseguiu tudo o que você queria, ou porque parou de querer, e isso torna a vida muito chata?
Seja como for, lendo o livro e me lembrando da fossa de minha amiga no Facebook, ocorreu-me que talvez uma das fontes da infelicidade seja a necessidade de parecermos felizes. Por que precisaríamos mostrar ao mundo uma cara (ou uma careta) de felicidade?
1) A felicidade dá status, como a riqueza. Por isso, os sinais aparentes de felicidade podem ser mais relevantes do que a íntima sensação de bem-estar;
2) além disso, somos cronicamente dependentes do olhar dos outros. Consequência: para ter certeza de que sou feliz, preciso constatar que os outros enxergam minha felicidade. Nada grave, mas isso leva a algo mais chato: a prova de minha felicidade é a inveja dos outros.
O resultado dessa necessidade de parecermos felizes é que a felicidade é este paradoxo: uma grande impostura da qual receamos não fazer parte e que, por isso mesmo, não conseguimos denunciar.

* Pro amigo que me desejou, com muita delicadeza e atenção, um 2011 com menos msn e mais perfume, menos twitter e mais sabor, menos virtualidade e mais abraço. Benditos sejamos nós, que seguimos preferindo a vida do lado de cá.

* Calligaris entrou na minha vida ainda no mestrado, graças às originais interpretações do pensamento de Nietzsche sobre o trágico. Acabei a tese de doutorado mas jamais tirei dos favoritos. O texto acima, e muitos outros, você encontra em contardocalligaris.blogspot.com.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O mal-estar (eterno) da civilização

“Em nosso mundo de furiosa ‘individualização’, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam – embora em diferentes níveis de consciência”.
Zygmunt Bauman

Helena luta para alinhar as esperanças diante do novo estado civil, divorciada aos 60 anos. Alfie, o ex-marido, tenta retomar o frescor da juventude mantendo casos esporádicos com ninfetas famintas por joias caras e coquetéis da moda. Sally, a filha única, retorna ao mercado de trabalho após um punhado de frustrações e logo se encanta com o way of life do chefe charmoso. Roy, seu companheiro, desequilibra-se entre as contingências do desemprego e a espera pelo aceite do seu atrasado romance, um sim que promete redimi-lo de todas as escolhas até ali, ressignificando a sua própria vida.

You Will Meet a Tall Dark Stranger
, traduzido para Você vai conhecer o homem dos seus sonhos, o mais novo filme do roteirista e diretor Woody Allen, inicia apresentando as possibilidades supostamente aconchegantes oferecidas pela roda da vida àqueles que estão sempre à espera de algo novo. Se o (re) começo vem infestado de aperto no estômago e frescas expectativas, o tempo, porém, acaba por revelar que transformações profundas são cada vez mais raras, e difíceis, e dolorosas, no volátil cenário contemporâneo.

A insatisfação reina em todos os espaços e esferas, sejam tempos de glória ou de fracasso. Helena não consegue se acostumar ao divórcio, procurando apoio numa vidente charlatã que encontra nas cartas o futuro brilhante que ela não acha em vida. Entre uma dose e outra de uísque, luta para ficar de pé, feito heróico em meio a tantos incômodos. Alfie, desencantado com a impermanência também da nova rotina de “jovem solteiro aos 70 anos”, prefere casar com uma prostituta interesseira a encarar a solidão tão típica dos tempos líquidos. Não demora muito para flagrar o engano também ali: Charmaine sequer sabe quem é o pai do seu bebê.

Obrigada a ajudar no sustento da casa, Sally troca o sonho da gravidez, impossibilidade antes, dada à instabilidade do casamento, pela (também) ilusão de usufruir da vida aparentemente perfeita do chefe, almejando uma libertação que só consegue encontrar fora dela mesma. Roy aproveita a distração da mulher para espiar a musicista cor de jambo que se exibe na janela da frente, condensando numa metáfora todo o enredo do filme: o gramado do vizinho parece sempre mais verde. Só parece, no entanto.

Muito rapidamente todos descobrem que retomada nem sempre rima com sucesso. Não correspondida pelo chefe, Sally percebe que a impossibilidade permanece. Enquanto isso, Roy sublima o sonoro não da editora entregando-se aos encantos da morena, que abandona o noivo em busca daquele “algo novo” que também ela desconhece. As novas experiências, porém, acabam se tornando tão falhas quanto as anteriores. O desfecho de Alfie, sozinho após tentar reatar o casamento com Helena, sugere que o “verde mais verde” do vizinho é apenas ilusão de ótica, a mais eficaz falácia moderna.

Misturando drama e comédia, marca da poética do autor, You Will Meet a Tall Dark Stranger insinua já no título original, uma óbvia alusão à morte, a insatisfação generalizada de uma sociedade repleta de sujeitos incapazes de manter a estabilidade e defender a verdade das próprias experiências. Neste território, a morte sempre chega antes do encontro ideal, da alma gêmea, da completude, da felicidade. Parte porque estamos sempre olhando para os lados, inquietos. Parte porque já somos incapazes de consertar, conciliar, adaptar, aceitar. Dificuldade típica da nossa era, como sugere Bauman: “O que dizer de uma balsa com um marinheiro inexperiente que, criado na era dos acessórios, nunca teve a oportunidade de aprender a arte dos reparos?”.

Embora se valha aqui de recursos cômicos quase simplórios, apelando para clichês do humor, como Viagra, videntes e sessões espíritas, Woody Allen ainda parece ser um dos poucos diretores contemporâneos que analisam de forma certeira as dores e as delícias de se viver no mundo de hoje. Se não traz respostas para os nossos males, ao menos coloca perguntas cruciais: “Afinal, por que estamos sempre insatisfeitos?”.

(Texto publicado no DC Cultura / Diário Catarinense, 27/11/2010)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

sobre os encontros definitivos.

"De repente, a longa fila, já pela metade, virou-se inteira para observar o imenso buquê de quase cinqüenta rosas vermelhas que forçou o caminho até a escritora, paralisando o autógrafo no meio da frase, justamente a dedicatória do exemplar do avô. Somente quando estava quase colado à mesa, encontrou abrigo para descansar as flores todas, revelando não apenas a identidade já imaginada como também um indiscreto corte na sobrancelha esquerda, escondido por uma gaze. Era o mesmo Tom de sempre, ela pensou, depois de passar delicadamente os dedos no supercílio namorado. Ouviu em sussurros que não devia se preocupar, batera com o carro em Brasília, e aquilo era só a reação do vidro, brincou. Não duvidou da veracidade da informação, e beijou o namorado com demora, mesmo reconhecendo nos olhares dos outros o velho misto de curiosidade e preocupação. Já haviam lhe contado do prêmio, disse, arrepiando-a com as palavras ao pé do ouvido; e era muito bom reconhecer a validade daquele tabefe, afinal. Nina, sorrindo, garantiu que não pediria desculpas; ele não merecia. Tom revidou que aquela, sim, era a sua menina; se pedisse perdão, perderia pontos valiosos. Beijaram-se mais uma vez, e ela até gostou de desafiar aqueles olhares. Juntaram-se num abraço de quase cinco minutos, presos num aninhamento consolador; ela logo observou ali que sua felicidade mais legítima crescia sempre envolta numa necessidade de chorar até se perder. Diante daquele cenário de excessos, diferenciou, pela primeira vez, o que era de verdade e o que era contingência; o que era costume e o que era amor; o que era felicidade e o que era apenas alegria. Quase se assustou: já não sabia viver sem Tom."

(romance de gaveta, na correção final)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Alegria, alegria.

Desde os 10 aninhos repito que jamais ultrapassaria os 30 sem um pós-doutorado nível máximo no currículo. Pois é.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Esconderijo do Homem Triste*


Não sei o que me aconteceu para ficar tão triste.
Lembro-me de ter percorrido meio mundo à procura de imagens. Tinham-me dito: é no movimento incessante de quem viaja que encontrarás a imobilidade que desejas.
Mas eu não sabia para onde ir. Deambulei anos a fio, e nunca encontrei as imagens que queria. Gastei as parcas forças que tinha neste trabalho, até que um dia me perdi junto ao mar.
Resolvi construir, ali mesmo, uma casa.
Tencionava não sair mais daquele lugar onde me perdera. Imobilizar-me, viver e envelhecer dentro de quatro paredes nuas erguidas pelas minhas mãos. Morrer frente ao mar, sozinho, como num romance que lera havia anos. Esperar que a casa se esboroasse e me servisse, por fim, de túmulo.
Assim não aconteceu. Algum tempo depois, a casa transformou-se subitamente em prisão. E talvez tenha sido isso que me pôs, assim, triste para sempre. Custava-me a crer que aquilo que eu próprio construíra acabasse de me atraiçoar.
Assustei-me e fugi nessa mesma noite. Ignoro o que se passou com a casa.
Não sei se ainda existe... o que sei é que a meio daquela fuga deseperada ocorreu-me o que me levaria, enfim, a encontrar o esconderijo para a minha imobilidade.
É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo.
Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar. Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele. A máquina disparou sem cessar.
Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse que nunca mais o voltaria a fazer.
Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador, eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos, porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes - e todo o meu corpo estava mole.
Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear, a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim.
Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então, a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo, brilhou. Em seguida deixei-me enteorpecer na temperatura tépida, voluptuosa, do fixador.
Tinha encontrado o esconderijo.
E aqui estou, diante de quem me visita e olha. Apesar de não ter deixado de ser um homem triste, adquiri a vantagem de estar sentado, e de já não precisar fugir ou desejar seja o que for.
Mas o pior momento do dia é aquele em que nos separamos. Não consigo dormir. Fico noite fora com a minha solidão - e quem esteve a ver-me parte com o susto de continuar a existir.
Nenhum de nós é capaz de murmurar: fica comigo e toca-me. E a noite cai, de certeza, mais escura para quem parte.
Eu sou apenas a imagem do que fui. Não sinto nada.
Certa vez, um homem e uma mulher pararam diante de mim. Olharam-me muito tempo.
Aproximaram-se, afastaram-se, voltaram a aproximar-se do vidro que me protege. O nariz da mulher quase me tocou nos joelhos.
De repente, a mulher inclinou a cabeça, sobressaltou-se e disse:
- Zé, perdi o vidro do relógio.
O homem baixou-se e procurou-o. Quando o encontrou, deu-lho. Mas ela argumentou:
- A culpa foi tua. Eu não queria vir aqui.
O homem, muito sério, respondeu-lhe.
- Francamente, Fátima, não te toquei no pulso. Não mexi no tempo. Nunca mexo no tempo...
Outras vezes, quando não está ninguém a olhar para mim, ponho-me a cismar:
A luz é o meu túmulo.
Em tempos, os meus gestos tiveram o rigor da abelha que rouba o pólen à flor. Com esses gestos quis construir um espaço para o silêncio. Uma morada onde fosse possível ignorar o mundo, ou esquecê-lo.
De vez em quando, aceito ainda o mistério das palavras que me cercam e não coincidem, em nada, com a realidade. Eu só quis celebrar a vida.
Encontrar o esconderijo onde fosse possível um derradeiro acto de paixão. O esconderijo onde pudesse, de novo, tocar teu rosto e recusar a aridez da calúnia.
Mas a luz é o meu túmulo.
A pouco e pouco incendiaram-se os negros profundos, o círculo luminoso aprisionou-me, e as mãos gesticularam sem sentido. O interior das paisagens guardou a tua ausência. E numa última visão a madrugada irrompeu do mar adormecido.
As mãos abriram-se novamente, quando o dia começou a devorar a nudez do corpo.
Comovido, perdi a voz.
Não podia chamar-te, lembro-me, por isso desatei a escrever o teu nome nas paredes da cidade. Tempo perdido. Já não podias ouvir-me nem ler-me.
Foi quando desejei, com ardor, este esconderijo.
Aqui, pelo menos, respiro ar condicionado, e um foco de luz simula a eternidade dos dias.
Não há emoções, nem palavras ditas em voz alta. Não acontece nada, nem se ouve respiração alguma.
Quem me visita diz coisas fantásticas a meu respeito. Nunca confirmo nem desminto. Limito-me a ouvir e calo-me. Porque há coisas que devem correr com o tempo e, mais tarde ou mais cedo, nele se apagam.
É claro que também há coisas guardadas na minha memória de papel. Mas essas, já não tenho a certeza de que alguém as tenha dito ou eu as tenha, de facto, ouvido.
Por vezes ponho-me a sorrir, mas ninguém consegue ver que sorrio, porque o retrato que me esconde - como eu - está morto e desfocado.
E a luz é o nosso túmulo.

* Lindo demais esse texto do Al Berto. É como eu sempre falo: esperança há muito deixou de ser luxo; é sobrevivência.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

sem poeira pelos cantos.

Usar cores fortes. Voltar a mim mesma. Escutar mais hip hop. Esquecer, perdoar, abandonar. Cortar o cabelo nos ombros. Comprar o primeiro batom. Aceitar a vida acadêmica. Retornar a Freud e Foucault. Reformar, cortinas e sonhos. Caminhar, mesmo sem saber para onde. Aceitar, recolher, transformar. Agradecê-los, mainha e painho. Voltar: à literatura, à vida. Renovar.


"Nos minutos seguintes de silêncio, cúmplices da mentira maior, aproveitou para reviver a tristeza insuportável daqueles dias chuvosos anteriores à partida para as novas terras. O pai, seu melhor amigo, de fato, enfim morrera da doença misteriosa que não compunha o repertório dos médicos. O namorado, a quem sempre se referia no diminutivo, já não a satisfazia em nenhum aspecto, sequer servia para apagar as lembranças da fresca madrugada. Havia ainda Beto, e desde que batera os olhos naquele músico tão carioca, em espírito e sotaque, deduziu a oportunidade de encontrar ali, e talvez apenas ali, uma redenção possível. Ao mesmo tempo, pensava todos os dias no doutorado quase abandonado, oportunidade exclusiva daquele momento, dando-se conta, cotidianamente, da vida pouco satisfatória, entre uma e outra aula particular, desperdiçando as horas como revisora de uma pequena editora local. Havia ainda todos aqueles princípios, fantasmas diante do precipício, insistentes em provocações típicas de tempos heróicos: ainda havia escolha, ainda havia chance, ainda era possível reescrever tudo de novo desde a dedicatória".

(velhas letrinhas caminhando para publicação)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

os perdões possíveis.

Abri a porta com o coração cheio de susto. Bastou rever aqueles olhos azuis para tudo se aquietar novamente. Com a voz embargada pelos anos todos em vão, no escuro silencioso das despedidas, ela ainda conseguiu escolher as palavras mais difíceis:

- Se tudo fracassar mais uma vez, quero que você jamais esqueça uma coisa. Isso aqui, nós, é a intensidade mais cheia de alma que já presenciei em toda a minha vida.

Sorri, desejando completar: "o que separou a gente foi guerra, Lívia". Mas afirmar isso era quase o mesmo que sugerir uma guerra concluída, já inexistente. Estacionei no silêncio: aos quarenta anos todos sabem que algumas guerras liberam fantasmas permanentes.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

perdões impossíveis.

VIVER
(Carlos Drummond de Andrade)

Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?
E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?
Isso, ou menos que isso,
uma noção de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?
O projeto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?
Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Respirando no outono

Always A Use
(Madeleine Peyroux)

Maybe ain't no use in sayin' what I want it to be
Maybe ain't no use in playin' a tune
Maybe ain't no use in singin' my blues
But there's always a use in you and me

Maybe ain't no use in watchin' through the window
As the towns and our lives roll on by
Maybe it ain't worth all the trouble in thinkin'
But there's always use in you and I We can make it true

We can work on it too
We can be what we want it to be
We can be together
As two or as three'cause there's always use in you and me

Maybe ain't no use in sayin' what I want it to be
Maybe ain't no use in playin' a tune
Maybe ain't no use in singin' my blues
But there's always a use in you and me

We can make it true
We can work on it too
We can be what we want it to be
We can be together
As two or as three' Cause there's always use in you and me

Maybe ain't no use in watchin' through the window
As the towns and our lives roll on by
Maybe it ain't worth all the trouble in thinkin'
But there's always use in you and I.

sexta-feira, 12 de março de 2010

I go back to…

Ele traz o rosto engolido pelo susto, preso em dúvidas impossíveis de desfazer com um abraço apertado. Acaba de virar a curva. Ela sorri, silenciosa e inocente. Ainda não imagina a dimensão do sofrimento futuro. Eles nunca precisaram compreender a sintonia entre felicidade e fracasso. A chuva miúda da semana inteira constrói poças do lado de fora da janela. Uma semana inteira de previsões, respingos, apertos. Nenhum dos dois lembrou do banho àquela manhã. Ela abre a porta, transbordando em expectativas. Ele segura seu corpo com as mãos firmes e a cabeça atolada em abismos incompreensíveis. “Agora é daqui pra frente”. Eles se assustam com a freqüência dos passos. Ela repara o vidro embaçado da porta da sacada. Será que jamais arranjaria alguém para dar jeito naquilo? Ele fecha os olhos, órfão de abrigos temporários. Reconhecia o inesperado daquela dor. Sinto vontade de gritar: “Desistam”. Haverá noites mal dormidas, desejos insatisfeitos, tensões imunes à esperança. Não consigo. “Vocês farão muito mal um ao outro, como só se faz a quem se ama”. Não consigo. “Nenhuma oração vai trazer de volta o melhor da alma”. Não consigo. Tudo ali transcende.

(... a tarde das estrelas no céu)

PS: Para ler na sequência da Sharon Olds.

quarta-feira, 3 de março de 2010

enquanto isso, na sala da justiça...

(para ler na sequência da dupla "choque de realidade", lá embaixo)

Manoel Carlos, o atual chefão das nove, parece remar na contramão dos indelicados costumes contemporâneos. Enquanto o mundo é assaltado por barulhentos moralistas (sobretudo falsos moralistas), o velhinho recorre a certa visão bastante particular dos relacionamentos para contrariar a nova (velha) ordem vigente. Viver a vida já pode ser considerada a teleficção mais cool até hoje: não há mocinhos nem vilões, não há certo e errado, não há falatório sobre contingências, não há escolhas fáceis nem sentenças obrigatórias.

Vive-se, "apenas".

Helena, a protagonista, decide se casar após um mês de namoro com o galinhão da história. Vinte anos mais velho, recém separado e pai de três filhas, Marcos abraça a missão "horário integral", mas não abandona os freelas. Para complicar ainda mais o envolvimento instantâneo com um homem sequer divorciado no papel, Helena carrega o fardo de ter escolhido um aborto no passado, remédio para uma gravidez imprevista, a fim de se firmar na profissão.

Friso: Helena não fez um aborto por falta de condições para criar o filho, recurso comum aos enredos lacrimejantes, típicos do gênero melodramático, estilo ficcional da modernidade. A mocinha abortou, sim, mas por amor ao trabalho e à sua opção de mulher sem filhos.

Para completar o rol das experiências inusitadas, logo após a lua de mel conhece Bruno, um fotógrafo da sua idade, por quem se sente irrestivelmente atraída. É correspondida. Com poucos meses de casada, beija o amigo num deslize nada calculado. Sente-se mal, jamais culpada.

No núcleo "cômico", Betina está prestes a completar bodas de porcelana com um galanteador que não dispensa a faxineira da própria casa. Juntos, tiveram uma filha adolescente. Embora sempre envolvido em noitadas e bebedeiras, Gustavo, o marido, parece nunca tê-la traído efetivamente. A "correção", porém, embora exista de fato, é relativizada pelo motivo: falta de oportunidade.

Um belo dia, sem qualquer aviso prévio, Betina apaixona-se por Carlos na esteira da academia. É correspondida. O susto toma conta, ela desabafa com a amiga. Ingrid divide choros e ranger de dentes, Betina não desiste. Atualmente sua vida se resume às peripécias para efetivar sua paixão sem ser descoberta. O casal extra-conjugal recebeu até música romântica na trilha.

Luciana, aspirante a top tetraplégica após acidente de ônibus, beija o irmão na boca bem no comecinho da trama. Eles não se sabem irmãos. Ela era noiva de Jorge na época. Detalhe: o descompasso ocorre com Bruno, futura paixão recolhida de sua madrasta Helena. O beijo deslocado jamais martirizou a modelo. E Manoel Carlos nunca voltou ao assunto, construindo um silêncio que naturaliza com ainda mais competência os tropeços do seu viver a vida.

"Acontece"- sugere a trama.

Miguel era para ser o gêmeo "malvado": aprontão, debochado, um tantinho indisciplinado, há anos luta para concluir a faculdade. Jorge, o certinho, recusa o dinheiro do pai para vencer às próprias custas no escritório de arquitetura. Valoriza o esforço, o terno e os modos corretos da cartilha. Namora a modelo Luciana desde a adolescência. Miguel apaixona-se pela namorada do irmão. Luciana apaixona-se por Miguel. O constrangimento é geral. Ainda assim, a ausência de moralismo é enfatizada com tanta segurança que o Brasil inteiro torce pelo casal torto.

Sem dúvida é a primeira vez que uma novela das nove aborda temas tão espinhosos sem moralismos e pré-julgamentos. As atitudes controvertidas das personagens, sobretudo das mulheres, não geram fofocas, salvo em raríssimas ocasiões, nem disse-me-disse, nem culpas abissais, nem castigos da providência. Os "erros" simplesmente não são assunto, nem fazem história - a não ser dentre os núcleos cruéis da novela, ávidos pelas fogueiras alheias. Ninguém padece de dor, ninguém torce por escândalos. A civilidade toma conta das confusões, impulsionada por certa maturidade que parece sussurrar o óbvio antes inédito na grade de programação: nem sempre a vida segue da maneira planejada, nem sempre os sonhos se concretizam, nem sempre se consegue completar o caminho sem virar a curva. Algumas situações exigem curvas. Dos mais absurdos desacertos entre irmãos às histórias de amor mais atropeladas, tudo aqui é tratado com uma naturalidade silenciosa e consoladora. A naturalidade de quem sabe que pouco se escolhe, no fim das contas. Algumas coisas simplesmente acontecem.

Ainda há alguma luz no fim do túnel.

E quem acende os faróis é um senhor de 76 anos.


PS: Texto escrito há semanas, apenas à espera de ganchos.
PPS: A capa do Hora de Santa Catarina, no último sábado, pergunta "Viver é trair?". Não, certamente que não. Mas "viver", esclarece Maneco, está longe de se limitar a bons mocismos.
PPPS: O segundo gancho é um textaço bom demais, do editorialista Rafael Cariello, publicado na Folha de São Paulo do último domingo. O título é "Moralismo migra das novelas para telejornais".

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Sharon Olds, paixão da hora.

I Go Back to May 1937*

I see them standing at the formal gates of their colleges,
I see my father strolling out
under the ochre sandstone arch, the
red tiles glinting like bent
plates of blood behind his head,
I see my mother with a few light books at her hipstanding at the pillar made of tiny bricks,
the wrought-iron gate still open behind her, its
sword-tips aglow in the May air,
they are about to graduate, they are about to get married,
they are kids, they are dumb, all they know is they are
innocent, they would never hurt anybody.
I want to go up to them and say Stop,
don’t do it—she’s the wrong woman,
he’s the wrong man, you are going to do things
you cannot imagine you would ever do,
you are going to do bad things to children,
you are going to suffer in ways you have not heard of,
you are going to want to die. I want to go
up to them there in the late May sunlight and say it,
her hungry pretty face turning to me,
her pitiful beautiful untouched body,
his arrogant handsome face turning to me,
his pitiful beautiful untouched body,
but I don’t do it. I want to live. I
take them up like the male and female
paper dolls and bang them together
at the hips, like chips of flint, as if to
strike sparks from them, I say
Do what you are going to do, and I will tell about it.

* I go back...

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

choque de realidade II*

“As pessoas reagiam com um ódio que eu não conseguia entender de onde vinha. Fui xingada como se tivesse cometido um crime. De andar na calçada e as pessoas gritarem de dentro do carro: ‘Vagabunda!’. Em restaurantes, sempre aparecia gente zoando. E você lá, comendo com o seu namorado, conversando de coisas simples, como o gato que está com a pata machucada, tinha que levantar e ir comer em outro lugar.”

Mallu Magalhães, sobre as dificuldades do comecinho do namoro com o músico Marcelo Camelo.

* Dei a dica pro Marquinhos, da Contracapa, e agora publico aqui também. Assustador demais.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

choque de realidade

Senhoras e senhoras, bem-vindos ao século XXI:

:: O general Raymundo Nonato de Cerqueira Filho defendeu, esta semana, que as Forças Armadas só devem aceitar homossexuais que mantenham segredo de sua orientação sexual. Para o digníssimo senhor, constrangedoramente ignorante em relação à constituição brasileira, há incompatibilidade entre os gays e a atividade militar. Adepto de ferrenho positivismo, ainda tentou explicar: "A vida militar reveste-se de determinadas características, inclusive em combate, que pode não se ajustar ao comportamento desse indivíduo".

:: Tessália, do BBB, deixa a casa sob ataques ferrenhos da COMUNIDADE por ter explorado o edredon ao lado do namoradinho, Michel, que omitiu detalhes do seu estado civil. Já "acusaram" a moça de lesbianismo, vagabundagem, sem-vergonhice, dentre outras ofertas. Enquanto isso, a oficial faz ensaio "sexy" no site Paparazzo, famoso reduto de sub-celebrities, e revela detalhes "estarrecedores e picantes" do relacionamento. A réplica da Twitess é a melhor parte do enredo: "Tô pouco me lixando". Salve, salve.

Eu tenho vergonha de viver nesse mundo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

1ª pessoa, masculino

Senti apenas tédio quando cheguei à Inglaterra. Amava Lívia, e já não era mais possível refutar a óbvia assertiva. Amava-a para além dos raros encontros nus, amava-a para além da perfeição dos traços e das evasivas, amava-a para além da ficção radiosa que carregava de um canto a outro como um tesouro ofertado a raros merecedores. A ficção era o seu produto mais bem acabado, denso e refinado, e desejá-la fora daquele espaço exigia uma intensidade que eu não imaginava dispor. Uma intensidade que começou a despontar no exato instante que observei suas pernas compridas e seus olhos puxados invadindo a sala de reuniões pela primeira vez. Era o ano de estréia da minha faculdade.

Para meu desespero, todos repararam a sua presença, e lutaram para adivinhar as disciplinas reivindicadas, e devoraram o olhar azul e oblíquo, e imaginaram suas costas ao sol e seus braços finos despidos de mangas e babados - "seria ainda mais bonita nua?" Alheia às especulações, ela atravessou o salão sem se intimidar com as expressões atabalhoadas ou os ruídos do próprio salto, sempre no mesmo passo decidido, suave mas compassado, num ritmo exclusivo dela. Olhava para a frente, presa num ponto fixo, absorvida por certo universo interno que, já ali, parecia envolvente como um bom livro. Apresentava uma segurança gratuita, em tom de desafio, como se já tivesse enfrentado um escândalo imprevisto e terrível.

Antes mesmo que ela se acomodasse, meus pensamentos já tinham arrancado o seu vestido cor-de-rosa, beijado com força seus lábios escurecidos pelo batom e possuído cada pedaço da sua alma com tranqüilidade e força. Quando acendi o primeiro cigarro, depois de fazê-la gozar três vezes, a versão vestida de Lívia escolhia um lugar ao meu lado, numa das tantas cadeiras vagas, ainda cheirando a tinta fresca. Sentou, bufou, espalhou os pertences sobre o apoio estreito. Na seqüência, virou-se para mim e abriu um sorriso brilhante, o único daquela tarde. Foi como receber um convite para a mais secreta fraternidade.

Retribui, forçando frieza, e protelando qualquer entrega ao deslumbramento. Cochichei em seu ouvido, disposto a recusar o atordôo pelo singelo sorriso de abertura: "Estão combinando o horário das reuniões mensais com a diretoria". Ela rebateu: "Como serão aos sábados, nem me interessa". E riu, sozinha. Se desconfiasse que eu era o diretor, a ironia seria bem maior, sem dúvida.

Hoje eu sei como Lívia funciona.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Sempre ele.

And in her eyes you see nothing,
No sign of love behind the tears cried for no one,
A love that should have lasted years.
(The Beatles)

Um ricaço de West Egg promove festas nababescas em sua mansão. Com uma taça de champanhe legítima na mão, desprezada sempre antes do fim, observa o combinado de grunhidos, perfumes e afetações do alto da varanda. Nunca conseguiu se divertir. Todas as notas de jazz tentam reparar uma perda inesquecível, a perda de Dayse, sua namorada de adolescência. Há anos espera a madrugada do reencontro, quando ela, finalmente, borboleteará toda a sua futilidade pelos jardins bem cuidados da residência. Ela nunca chega; talvez nunca tenha havido amor no seu olhar. Por Dayse, Jay Gatsby virou milionário, desafiou leis, comprou brigas infindáveis, chorou lágrimas secas, atraiu toda a maledicência da província. Ela nunca se importou; a aparência borbulhante do seu castelo de cartas sempre pareceu mais viçosa. Ele compreende a impossibilidade: "Às vezes a gente perde o principal, meu velho". Às vezes não, Gatsby.

Baita história - forte, doce e triste, como a vida. Sem dúvida, o mais bem escrito romance de Scott Fitzgerald, embora não seja o meu xodó (http://jadices.blogspot.com/2009/10/meus-mais.html). É a sexta vez que leio e sempre fico impressionada. Como disse o MESTRE Paulo Francis, "se você algum dia foi jovem e se apaixonou, Fitzgerald escreveu este livro... só para você".

É isso aí, meu velho.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

letrinhas

"Tomada pela iniciativa de concluir a despedida, Maria Carolina partiu, apressada, sem corresponder ao abraço apenas esboçado de Tom, sem sequer parabenizar a amiga pela nova conquista profissional. Entre passos em falso e corridas meio desengonçadas, caminhou até a esquina, lutando com as próprias pernas para se ver longe de Tom, ao menos naqueles minutos, confusa pelo único pensamento que persistia em sua mente como idéia fixa. Seria melhor agora, explicava, de si para si, sem saber exatamente o quê; afinal deveria valer para alguma coisa não ter mais dúvida alguma sobre o que desejava próximo e o que preferia manter bem longe. Vencida pelo susto, porém, não teve tempo de atravessar a rua: apoiada num banco público de ferro branco, chorou compulsivamente durante a meia hora inteira que levou para perceber que tudo já se modificara mais uma vez. Eram as primeiras lágrimas desde que seu olhar alcançara Beto naquele caixão; era talvez a última chance deles, ela e Tom, Tom e ela".

(livro de gaveta, prometido para 2010)

PS: De volta à carreira universitária, depois de um ano afastada por falta de alunos. Professora, mais uma vez, agora da Uniban. Já adianto: nada de vestidos cor-de-rosa.
PPS: Bem-vindo, Antônio! Que seja doce a sua história.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Um brinde (sem álcool)

Bastaria um telefonema à meia-noite, seguido da frase engasgada: "obrigada por tudo, por ser, por existir". Mas Lola não conseguiu. Sabia que iria muito além.

"Me ensina os passos lentos. Me ajuda a respirar. Como você alcança essa frequência? De onde sai tanto silêncio?"

Deitou, pensou, escreveu o sms de feliz aniversário. "Amo" - apenas as três letras mágicas, reunidas na ordem ideal. Charlie era seu irmão, uma fatia dela, ácida, e aquilo era tão grandioso que impedia o milagre da frase correta. E logo com ela, tão cheia de letrinhas. Buscou coragem para escrever:

"Não sei como seria sem você. Não sei quem eu seria".

Não escreveu nada.
"Amo" - apenas.
Desde sempre, pensou.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

drops

:: A única imagem assimilada por Valentina naquela manhã de abril foi o desbotado do céu: não havia contornos, nem sustos, nem margens. Apenas uma tristeza mansa que encobria seu olhar com um véu de saudade e melancolia.

:: As pessoas suportam cotas diferentes de felicidade e dor. Existe uma zona de conforto, e ela é diferente para cada um. Acreditar que excesso de felicidade constrói mais felicidade é uma falácia. Ingenuidade, na melhor das hipóteses. Se excesso de tristeza é depressão, felicidade em demasia é desespero.

:: Até conhecer Lívia eu era um homem de beiradas. Jamais ultrapassava a fronteira, jamais permiti que qualquer coisa ou pessoa se tornasse fundamental. Eis o ponto: até ser apresentado ao seu andar felino, insuportável de tão perfeito, eu não conhecia a necessidade.

:: - O que você faz aqui? - Valentina perguntou, sem esconder o estranhamento.
- Eu espero.
Algo se adensa no silêncio.
- Espera o quê?
Depois do suspiro, uma confissão:
- Me espero.

(livro de gaveta)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

velhas letrinhas

Na entrada do jardim, entre flores desbotadas e folhagens grandiosas, uma placa impedia devaneios maiores: acesso proibido à noite. Encararam a ordem, em roupas de banho. Olharam-se, trocando sorrisos imediatos. De mãos dadas naquele novo risco, inocente agora, desafiaram o imperativo, mais uma vez, mergulhando na piscina sob as estrelas caducas do céu bahiano. A temperatura da água competia em frieza com os buracos fundos do estômago. Talvez tudo estivesse sendo decidido naquele instante: a dimensão do futuro, as páginas cheias de rasuras, o sentido do passado, a longa estrada de feridas. Poderiam ter sido melhores um para o outro, sem dúvida. Se tivessem previsto tamanho sofrimento, talvez conseguissem engrossar os escudos. Impossível aquilo também, impossíveis as felicidades distantes. Talvez tudo já tivesse se decidido há tempos, à revelia das vontades mais legítimas. Sustentaram o silêncio por longos minutos. Ela mergulhou de novo, aproximando-se dele, encostado na borda. Renovada pelo conjunto de braçadas, Lívia encontrou coragem para começar pelo pior dali:

- Eu te quis demais àquela noite.

Frederico apenas sorriu, os olhos quase fechados. Há meses aguardava qualquer confissão sobre a sua madrugada mais frustrada. Se nunca acreditou tanto no futuro quanto naquelas quatro horas espremidas entre vícios da rotina, jamais alcançara o mal da manhã seguinte. "Nossas glórias serão sempre ingratas" - ela ainda sugeriu, na despedida, taça de vinho tinto na mão. A inviabilidade do enredo, as promessas fajutas trocadas em mesas de bar, o olhar trêmulo de pavor, a mistura da maior dor à grande benção, tudo aquilo partiu-o. Partiu-o em tantos que se escondia no hotel desde então: encontrara fantasmas demais perambulando nas ruas. A solução, supostamente temporária, já devorara alguns anos de sua vida. Do momento que escondeu as alianças no bolso até aquela nova infração, jamais ultrapassara os portões de entrada para o lado de lá, o lado do mundo, o lado da vida, o lado de Lívia. Fazia 2 anos, 3 meses e 23 dias, e ele jamais se perdeu nas contas. Desnorteado desde o inesperado telefonema, após alguns ensaios infrutíferos em frente ao espelho, conseguiu responder, ainda rouco de surpresa:

- Eu também te quis demais àquela noite.

Olharam-se num silêncio quente e úmido. Ele espiou os arredores, resignado com os esqueletos do armário. Por mais sujas que estivessem suas mãos, sempre soube que reencontraria aquela voz. Ela voltou à dor, à perda, às negativas. Gostaria de reescrever os princípios todos, mas talvez não houvesse mais tempo. Parecia sempre tarde para os imprescindíveis. Quis chorar pela fraqueza, pela recusa, pelo medo. Encarou Frederico, que sorria um sorriso de compreensão. Ele entendia, de fato. Não sabia exatamente o quê, nem como, mas entendia. Compreendia o fracasso e a dúvida, os passos apressados e a imaturidade irresponsável, a fuga melodramática pela porta dos fundos e os olhos sempre borrados de rímel. Afastando qualquer desespero, recorreu à lembrança salvadora: jamais outra oferta alcançara aquela dimensão. Espanou os pós todos, do coração aos saltos, da cabeça fervilhando, da vida equilibrista. Encerrou a questão:

- E ainda não amanheceu para mim.

(livro de gaveta)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Diretoria *

Um deles é intenso como um ponto de exclamação! Fala alto, ri gostoso, explode em palavrões e superlativos mesmo diante das histórias mais ordinárias. Menino ainda, já foi estudante, garçom, recepcionista, produtor, professor, recreador, gerente e cozinheiro, dentre outras atuações impublicáveis. Só faltou a enfermagem. Encaminhado na direção, agora é linguarudo de carteirinha, além de jornalista convicto. Descobriu novinho as surpresas da vida, nem sempre agradáveis, mas dispensou o susto com bom humor. Levou a lição adiante e hoje compensa o tom ardidinho recusando quaisquer julgamentos. Sobretudo os próprios.

O segundo integrante chegou de mansinho, arrastado por uma circunstância nada simpática: começara a namorar uma delas. Quando perceberam, o intruso alastrara-se com tal competência que já coordenava a turma toda. Sempre gostou de carro, futebol e cervejinha, temas antes pouco explorados nas assembléias da diretoria. Aprendeu a conviver com avaianos, sacrifício maior, e enredos dignos de seriado. Especialista em conselhos racionais, desconfia de tudo, bastante, o tempo inteiro. Quando cisma com algo ou alguém, vira piada interna, tamanha implicância. Quando precisa voltar atrás, não recua. Mas mantém o famoso bico armado.

O terceiro sempre alimentou uma perigosa mistura de autocomplacência e irrestrito desprezo pela humanidade. Após anos fora da província, voltou ainda mais, digamos, peculiar. Sábio como uma entidade budista, dotado de certa mediunidade ingrata, antecipa desfechos, prevê situações, anuncia desastres catastróficos - sempre com o mesmo tom de voz. Quase nunca é ouvido. Protesta esbravejando contra o repertório alheio, do alto de sua montanha indie. "É porque eu sou de aquário, babe". Dado a surtos esporádicos, desaparece de vez em quando, sem rastros. Quase sempre incomoda mais do que conforta. Por tudo isso, e tantos mais, nasceu para rei.

Da ala feminina, ela é a mais doce. Transforma os problemas de todos, dos banais aos grandiosos, em enxaqueca ou pesadelos repetitivos, geralmente envolvendo janelas. Ouve calada as histórias mais cabulosas; palpita pouco e compreende tudo. Parceira em games enjoativos, mania antiga das moças, está sempre presente, mesmo quando duplica a carga horária no consultório. Gosta de bichos e conversas esticadas, descobre canções fofinhas que escuta até cansar, lê Fitzgerald na esteira da academia, cria apelidos constrangedores dos quais não consegue se desvencilhar depois. Adepta do macrovita até debaixo d'água.

A outra integrante atravessa profunda transformação, dadas as preferências líquidas da diretoria: trocou as taças de vinho pelo suco de limão, ao descobrir que esperava o primeiro bebezinho. Para compensar o radicalismo necessário, aplicou negrito em várias qualidades. Extremada defensora dos amigos, mesmo quando os encontra nas situações mais desconfortáveis, luta com unhas e dentes contra todos que agridem seus eleitos. É tão parceira que perdoa sem titubear, defende sem pedir explicações, ri e sofre sem saber por quê. Já foi loira, ruiva, morena e cantora. Hoje coleciona histórias bizarras e pede fraldas tamanho M ou G.

A terceira integrante alcançou a façanha suprema: COCHILAR em meio às seletas reuniões festivas. A naturalidade com que os olhos se fecharam em pleno sofá foi tão assustadora que constrangeu até mesmo os defensores do afastamento. Acabaram por concordar, em uníssono: tal desfaçatez merecia respeito, jamais reprimendas. A dona da improvável dormidinha é toda assim: desligada, trapalhona, péssima para números. Em compensação, é autora dos conselhos mais malucos, das histórias (de amor) mais compridas e das madrugadas mais divertidas. Quando alcança o milagre de ultrapassar a meia-noite, é claro.

A última, criadora do conceito "diretoria", mentora da idéia de reunir a turma sob o peso da responsabilidade do título, atrapalha-se um bocado. Tudo é meio over ali: caminha, atropela, ama, arranha. Tem um irmão de fé e outra de infância. Já precisou pedir perdão, e chorou ao receber um abraço apertado de volta. Já precisou partir algumas vezes, mas conseguiu seguir adiante sem olhar pra trás. Graças, sempre, às mãos que encontrou estendidas. Assim como o Nelsão, reconhece que o amigo é um momento de eternidade.

Erram aos borbotões, quase todos os dias, como todo mundo. Acertam também, compartilhando vitórias e felicidades. São velhos amigos de infância, embora dois ou três tenham se encontrado depois dos vinte. Mesmo com motivos de sobra para preocupação - pais, filhos, casa, emprego, dinheiro - confortam-se com a presença inequívoca. Brigam entre si, também quase todos os dias. Mas abandonam qualquer rusga ou arrufo para zelar pela potência da instituição. Alguns adivinham madrugadas escuras, oferecendo telefonemas salvadores. Outros só sorriem, em silêncio.

* A você, irmão, irmão, irmão, meu xodó, meu mais.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Vicky, Cristina, Barcelona.

A autoria do norte-americano Woody Allen sugere duas interpretações da experiência humana. A primeira, com aparições esporádicas na indústria do cinema, tragifica experiências comuns à modernidade (ainda que desconfortáveis), condenando as personagens a escolhas extremas, motivadas por erros possíveis de driblar com um tantinho de sorte ou temperança. Assim ocorre em Crimes e Pecados, que conta o drama do médico Judah Rosenthal , disposto a assassinar a amante para livrar sua reputação de interferências negativas. Assim também ocorre no recente Match Point, microcosmo do seu "cinema de dilema", no qual o protagonista Chris Wilton vive um pesadelo particular, repleto de mentiras e baixezas, após se envolver com uma aspirante a atriz.

Quando potencializa o desvio das fronteiras, Woody Allen coloca no centro da cena os erros e enganos espontâneos, geralmente infidelidades, que transformam/transtornam a vida dos (anti-) heróis, expulsando-os para sempre da zona de conforto. Geralmente tais ultrapassagens do "esperado" corroem os arredores da experiência dos protagonistas até atingirem o ponto mais íntimo, ápice da trajetória descendente desses mocinhos tão cheios de potência (para o bem e para o mal). Ironicamente, nos dois casos citados as personagens principais escapam das consequências legais (merecidas, até segunda ordem). Na primeira história, por inteligência. Na segunda, por um golpe de sorte. Não escapam, porém, deles mesmos: seguem com a culpa.

Mas há um outro Woody Allen, não tão afeito ao trágico, que flerta periodicamente com a maneira libertária com que o espanhol Pedro Almodovar espia o mundo do lado de cá. Quando elabora tal visada, abandona a tragificação do cotidiano para seguir o caminho oposto: naturalizar as situações mais exóticas, simplificar descaminhos (aparentemente) chocantes, amplificar o mínimo detalhe que transforma desvio em imperativo. E é este Woody Allen subversivo que comanda roteiro e direção de Vicky, Cristina, Barcelona.

Num ensolorado verão em Barcelona, a correta Vicky se apaixona pelo "quente" Juan Antonio, artista plástico de renome, às vésperas do casamento dos seus sonhos. Envolve-se com ele, dorme com ele, não consegue tirá-lo da cabeça. O noivado continua, até virar casamento. A paixão permanece. Cristina, oposta em tudo da melhor amiga, defende o amor livre. Acaba nos braços do latino que confundiu Vicky, com quem vai morar na mesma semana. O quadrilátero se confirma quando a perturbada Maria Elena, ex-mulher de Juan, volta para casa após uma tentativa de suicídio. Cristina envolve-se com os dois, e tudo termina num triângulo insólito, desfeito justamente quando adquire o "peso" do ordinário/comum/pacífico. Nenhum deles sabe exatamente o que quer, e tal incompletude parece ser resultado de corações cheios de dúvida, sempre prontos para bater em horas impróprias.

Todos erram aqui. Não são maus, mas erram por querer, sobretudo a mocinha clássica, Vicky, que precisa receber um tiro na mão para reconhecer a inadequação da roda-viva Maria Elena & Juan às suas expectativas de futuro. Pior: ela erra e ninguém sabe, sequer o noivo. Cristina, ao mesmo tempo, destrói um triângulo (ironicamente) perfeito por pura insatisfação (incurável), desestabilizando a vida de duas pessoas para seguir adiante com a sua. Juan Antonio e Maria Elena optam pela frequência de sempre, entre agressões físicas e encontros fulminantes.

Todos erram aqui, de fato. Envolvem pessoas, subvertem as regras, escondem dados importantes. Mas são todos honestos com o mais importante, eles mesmos. Honestos com suas verdades voláteis, com suas promessas fajutas, com suas permanências insondáveis, com seus mistérios e, sobretudo, com suas confusões. Nas mãos generosas do diretor, tornam-se humanos, jamais imaturos. Woody Allen conhece nossas falhas, nossas faltas, nossas ganas, e nos abençoa (também) por isso. Conviver com os erros é lição de sabedoria, parece dizer, jamais de destruição.

* Scarllet Johansson (a Cristina) foi um dos meus vícios de novembro. Achei completamente vintage a sua voz agudinha e viciei no álbum dela com Pete Yorn. Hoje não aguento mais ouvir...

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

de volta.

votos de coragem e felicidade para todos em 2010.
votos de amor e sossego.
votos de perdão, saúde e prosperidade.
que a vida seja doce conosco.