sexta-feira, 12 de março de 2010

I go back to…

Ele traz o rosto engolido pelo susto, preso em dúvidas impossíveis de desfazer com um abraço apertado. Acaba de virar a curva. Ela sorri, silenciosa e inocente. Ainda não imagina a dimensão do sofrimento futuro. Eles nunca precisaram compreender a sintonia entre felicidade e fracasso. A chuva miúda da semana inteira constrói poças do lado de fora da janela. Uma semana inteira de previsões, respingos, apertos. Nenhum dos dois lembrou do banho àquela manhã. Ela abre a porta, transbordando em expectativas. Ele segura seu corpo com as mãos firmes e a cabeça atolada em abismos incompreensíveis. “Agora é daqui pra frente”. Eles se assustam com a freqüência dos passos. Ela repara o vidro embaçado da porta da sacada. Será que jamais arranjaria alguém para dar jeito naquilo? Ele fecha os olhos, órfão de abrigos temporários. Reconhecia o inesperado daquela dor. Sinto vontade de gritar: “Desistam”. Haverá noites mal dormidas, desejos insatisfeitos, tensões imunes à esperança. Não consigo. “Vocês farão muito mal um ao outro, como só se faz a quem se ama”. Não consigo. “Nenhuma oração vai trazer de volta o melhor da alma”. Não consigo. Tudo ali transcende.

(... a tarde das estrelas no céu)

PS: Para ler na sequência da Sharon Olds.

quarta-feira, 3 de março de 2010

enquanto isso, na sala da justiça...

(para ler na sequência da dupla "choque de realidade", lá embaixo)

Manoel Carlos, o atual chefão das nove, parece remar na contramão dos indelicados costumes contemporâneos. Enquanto o mundo é assaltado por barulhentos moralistas (sobretudo falsos moralistas), o velhinho recorre a certa visão bastante particular dos relacionamentos para contrariar a nova (velha) ordem vigente. Viver a vida já pode ser considerada a teleficção mais cool até hoje: não há mocinhos nem vilões, não há certo e errado, não há falatório sobre contingências, não há escolhas fáceis nem sentenças obrigatórias.

Vive-se, "apenas".

Helena, a protagonista, decide se casar após um mês de namoro com o galinhão da história. Vinte anos mais velho, recém separado e pai de três filhas, Marcos abraça a missão "horário integral", mas não abandona os freelas. Para complicar ainda mais o envolvimento instantâneo com um homem sequer divorciado no papel, Helena carrega o fardo de ter escolhido um aborto no passado, remédio para uma gravidez imprevista, a fim de se firmar na profissão.

Friso: Helena não fez um aborto por falta de condições para criar o filho, recurso comum aos enredos lacrimejantes, típicos do gênero melodramático, estilo ficcional da modernidade. A mocinha abortou, sim, mas por amor ao trabalho e à sua opção de mulher sem filhos.

Para completar o rol das experiências inusitadas, logo após a lua de mel conhece Bruno, um fotógrafo da sua idade, por quem se sente irrestivelmente atraída. É correspondida. Com poucos meses de casada, beija o amigo num deslize nada calculado. Sente-se mal, jamais culpada.

No núcleo "cômico", Betina está prestes a completar bodas de porcelana com um galanteador que não dispensa a faxineira da própria casa. Juntos, tiveram uma filha adolescente. Embora sempre envolvido em noitadas e bebedeiras, Gustavo, o marido, parece nunca tê-la traído efetivamente. A "correção", porém, embora exista de fato, é relativizada pelo motivo: falta de oportunidade.

Um belo dia, sem qualquer aviso prévio, Betina apaixona-se por Carlos na esteira da academia. É correspondida. O susto toma conta, ela desabafa com a amiga. Ingrid divide choros e ranger de dentes, Betina não desiste. Atualmente sua vida se resume às peripécias para efetivar sua paixão sem ser descoberta. O casal extra-conjugal recebeu até música romântica na trilha.

Luciana, aspirante a top tetraplégica após acidente de ônibus, beija o irmão na boca bem no comecinho da trama. Eles não se sabem irmãos. Ela era noiva de Jorge na época. Detalhe: o descompasso ocorre com Bruno, futura paixão recolhida de sua madrasta Helena. O beijo deslocado jamais martirizou a modelo. E Manoel Carlos nunca voltou ao assunto, construindo um silêncio que naturaliza com ainda mais competência os tropeços do seu viver a vida.

"Acontece"- sugere a trama.

Miguel era para ser o gêmeo "malvado": aprontão, debochado, um tantinho indisciplinado, há anos luta para concluir a faculdade. Jorge, o certinho, recusa o dinheiro do pai para vencer às próprias custas no escritório de arquitetura. Valoriza o esforço, o terno e os modos corretos da cartilha. Namora a modelo Luciana desde a adolescência. Miguel apaixona-se pela namorada do irmão. Luciana apaixona-se por Miguel. O constrangimento é geral. Ainda assim, a ausência de moralismo é enfatizada com tanta segurança que o Brasil inteiro torce pelo casal torto.

Sem dúvida é a primeira vez que uma novela das nove aborda temas tão espinhosos sem moralismos e pré-julgamentos. As atitudes controvertidas das personagens, sobretudo das mulheres, não geram fofocas, salvo em raríssimas ocasiões, nem disse-me-disse, nem culpas abissais, nem castigos da providência. Os "erros" simplesmente não são assunto, nem fazem história - a não ser dentre os núcleos cruéis da novela, ávidos pelas fogueiras alheias. Ninguém padece de dor, ninguém torce por escândalos. A civilidade toma conta das confusões, impulsionada por certa maturidade que parece sussurrar o óbvio antes inédito na grade de programação: nem sempre a vida segue da maneira planejada, nem sempre os sonhos se concretizam, nem sempre se consegue completar o caminho sem virar a curva. Algumas situações exigem curvas. Dos mais absurdos desacertos entre irmãos às histórias de amor mais atropeladas, tudo aqui é tratado com uma naturalidade silenciosa e consoladora. A naturalidade de quem sabe que pouco se escolhe, no fim das contas. Algumas coisas simplesmente acontecem.

Ainda há alguma luz no fim do túnel.

E quem acende os faróis é um senhor de 76 anos.


PS: Texto escrito há semanas, apenas à espera de ganchos.
PPS: A capa do Hora de Santa Catarina, no último sábado, pergunta "Viver é trair?". Não, certamente que não. Mas "viver", esclarece Maneco, está longe de se limitar a bons mocismos.
PPPS: O segundo gancho é um textaço bom demais, do editorialista Rafael Cariello, publicado na Folha de São Paulo do último domingo. O título é "Moralismo migra das novelas para telejornais".