sexta-feira, 14 de agosto de 2009

lições nunca ensinadas

"O que é grande no homem, é que ele é uma ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem, é que ele é um passar e um sucumbir".


"Tudo o que é reto mente. Toda verdade é sinuosa. O próprio tempo é um círculo".


"Não pretenda ser feliz, mas verdadeiro".


F. Nietzsche, o único autor legítimo de auto-ajuda.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

pra entender o mundo

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome. O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos. O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina. O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos. Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina. O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água. O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome. O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel. O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso. O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala. O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

(Os Três Mal-Amados, de João Cabral de Melo Neto)

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Vá lá: www.tudosobrenelsonrodrigues.com.br

Tenho horror público a qualquer tipo de comemoração ensaiada, com data marcada para a saudade, inclusive aquelas (infelizmente) clássicas, como "10 anos de formatura", "15 anos da entrada na UFSC", "12 anos de mestrado". Simplesmente não vou. Mês passado, porém, tomada por um impulso de organização motivado por forças externas, resolvi, enfim, encontrar um abrigo virtual decente ao meu TCC, busca adiada há pelo menos 5 anos. Desde o lançamento, em abril de 2002, as 500 páginas orientadas pelo meu querido Clóvis Geyer ocupavam um cantinho escondido do portal do curso de Jornalismo da UFSC, de onde foi extirpado, sem dó, nas proximidades do último natal. O projeto, o site mais completo "do mundo" sobre Nelson Rodrigues, continua de pé, já que permanece como o principal, quiçá único, sítio virtual disponível sobre a obra do dramaturgo, folhetinista e jornalista (e tradutor fantasma, e dialoguista de quadrinhos infantis, e cronista de futebol, e memorialista, e polemista, e tantos mais). Enquanto escolhia entre os endereços disponíveis, refiz mentalmente os cálculos e percebi que em 2008 também completei 10 anos de entrada no curso. Sorri, feliz. Ainda assim, não senti nenhuma vontade de comemorar.

Obs: O site está publicado tal e qual 2002. Atualizações, imprescindíveis, estão prometidas para um futuro próximo. O link, aqui: www.tudosobrenelsonrodrigues.com.br

Obs 2: Tal furo já foi noticiado anteriormente em 1cronicapordia.blogspot.com, do meu menino.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

3 versões para uma mesma sombra*

"O homem na rua moderna, lançado nesse turbilhão, se vê
remetido aos seus próprios recursos – freqüentemente recursos
que ignorava possuir – e forçado a explorá-los de maneira
desesperada, a fim de sobreviver. Para atravessar o caos, ele
precisa estar em sintonia, precisa adaptar-se aos movimentos do
caos, precisa aprender não apenas a pôr-se a salvo dele, mas a
estar sempre um passo adiante. Precisa desenvolver sua
habilidade em matéria de sobressaltos e movimentos bruscos, em
viradas e guinadas súbitas, abruptas e irregulares – e não
apenas com as pernas e o corpo, mas também com a mente e a
sensibilidade".
(Marshall Bermann, Tudo o que é sólido desmancha no ar)


"Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan".
(Carlos Drummond de Andrade, Elegia 1938)


"Não acredito em honestidade sem úlcera".
(Nelson Rodrigues)


* por ora, só sobrou disposição para falar através da boca dos outros.