quinta-feira, 8 de outubro de 2009

meus mais

Como discutir literatura é uma das missões deste blog, quase sempre substituída por incursões ficcionais ligeiras e biografemas inconclusos, preparei uma lista com a dezena de historinhas que me transformaram naquilo que sou hoje (pro bem e, principalmente, pro mal). Meus dez mais foram lidos, relidos, vistoreados, devorados e pensados ao longo dos últimos anos, rendendo as impressões abaixo. Discípula obediente de Nelson Rodrigues, acredito piamente que o único prazer (intelectual) maior do que a leitura é a releitura. E, para finalizar, é sempre bom deixar claro: a escolha foi feita de súbito, desprezando, ao mesmo tempo, a isenção e o hype. Ou seja, as opiniões remetem apenas a sentimentos inexplicáveis e intensos, não a teorias literárias, "clássicos obrigatórios" ou teses de terceiros, embora às vezes a coincidência ocorra. Sem preocupação alguma além da satisfação, a única ordem aqui é liberdade. *


:: Suave é a noite (Scott Fitzgerald, 1934)

Há algo de trágico na trajetória do prodígio Dick Diver, médico que abandona a psquiatria para se casar com uma bela paciente, a milionária e esquizofrênica Nicole Warren. Nas três partes que compõe o romance, expostas em ordem não cronológica, quase tudo é impossibilidade, derrocada, fracasso - embora as três palavras não pontuem a narrativa, exemplo da sutileza do autor. Dick era um zé-ninguém que prometia tudo, sem cumprir nada. Nicole era uma garota que encontrava tudo à mão, menos o principal. Juntos, viveram a aventura de uma geração, perdida já nas primeiras linhas, esbanjando dinheiro, juventude e expectativas como se jamais fossem acordar no dia seguinte. Ao contrário dos romances anteriores, nos quais narrou com maestria as madrugadas iluminadas dos anos 20, Suave é a noite é a obra da ressaca, a única que detalha a manhã seguinte aos excessos inevitáveis.

Os porres homéricos, a paixão proibida (e salvadora) do protagonista pela fútil Rosemary, a luta (inglória) de Nicole contra os fantasmas da infância, o estilão boudoir das intrigas e dos desfechos, os coadjuvantes perdidos em cenas hilárias e/ou tristes, os navios flutuando de um lado a outro, a imagem do imponente hotel nas bordas do mar azul da Riviera**, o deslocado duelo decidido entre um gole e outro, a vida que passa com excessiva rapidez, sem aceitar os freios da cautela e/ou do planejamento, corroendo sonhos e liberdades, furiosa e descontrolada, entregue à ruindade mais terrível de cada personagem. Ruindade porque descrença, preguiça, comodidade. Uma profusão de males, males que nascem de escolhas, as escolhas erradas da vida.

O grande barato aqui, o mais tocante, é certa sensação compartilhada por quase todas as personagens do livro: olhar para trás e não gostar do que encontra; encarar o espelho e vislumbrar algo (muito) imprevisto. Diferentemente da civilização construída em seus outros três romances, Este Lado do Paraíso, Belos e Malditos e O Grande Gatsby, o tempo passou em Suave é a noite, e já não somos mais jovens, nem belos, nem contamos com um futuro repleto de páginas em branco. Há uma tristeza funda na constatação da melancolia. Mas há uma contrapartida típica da obra de Fitzgerald, um generalizado e infantil "dane-se, somos melhores, continuamos sendo melhores, porque tivemos coragem para viver isso". Mesmo que "isso" signifique uma grandiosa derrocada, talvez até pelo imperativo da queda.

Há certa afetação no texto, adjetivado e cheio de plumas, marca da poética do escritor, que entrou para a história americana justamente por adotar o contraponto estilístico do colega e inimigo Hemingway (com quem, inclusive, costumava comparar seus dotes nos lavabos da high). Escrito em longuíssimos oito anos, enquanto o próprio Fitzgerald padecia entre clínicas contra o alcoolismo e visitas ao hospício da mulher Zelda, Suave é a noite é formalmente irregular, bagunçado e muitas vezes, muitas mesmo, levado às pressas. Ainda assim, o resultado constrói um monumento de clima, frescor, legitimidade. As últimas cenas de Dick na Riviera, olhando o mar ao longe, órfão de afeto e de bebida, faminto da juventude que tanto temeu perder, continuam me deixando com os olhos molhados, mesmo após uma dúzia de releituras.

Derradeira incursão literária do autor, já que O Último Magnata é obra póstuma, Suave é a noite é todo Fitzgerald: as experiências, as marcas, o estilo, as dores, a cena, os defeitos, os alívios***. Mesmo se não fosse tão bom, só por isso já valeria a pena.


* Este post deveria abarcar todos os meus mais. Como me passei na análise, publicarei um por um. Nada mais justo: me recuso a me economizar, sobretudo para os meus favoritos.

** Sou tão devota que reproduzi, na minha primeira viagem à Europa, TODO o roteiro Cote d'Azur vivido pelo casal Dick e Nicole, com direito a fotos em cada uma das praias e uma sessão extra na pequena Saint Raphael, onde a família da moça construiu seu hotel. Sick, admito.

*** Palavra de quem leu mais de dez biografias de Scott Fitzgerald, duas de Zelda Fitzgerald, a mulher dele, incontáveis perfis, dois livros sobre o casal e uma compilação de cartas trocadas.
Sick total, admito.

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