segunda-feira, 19 de outubro de 2009

resenha para um amigo

Sem medo do clássico*
(versão do autor)

João Hernesto Weber pertence àquele rol de professores que marcam a trajetória dos alunos, seja pela ironia impressa nos debates orientados em sala de aula, seja pelo extenso conteúdo apresentado nas grades. Acompanhar seu pensamento, porém, já não é exclusividade dos freqüentadores dos embates literários brasileiros, circunscritos num universo de congressos, pesquisas e artigos científicos. O lançamento de Tradição Literária & Tradição Crítica, sua mais recente coleção de ensaios, expande a experiência do autor para além dos limites da academia, reposicionando ricas discussões sobre o Brasil, a literatura daqui e sua crítica.

A direção de Weber, importante frisar, é avessa a modismos teóricos de qualquer espécie. Se a universidade muitas vezes remaneja expectativas em função do filósofo estrangeiro em voga no momento, ele dispensa o hype e se debruça sobre a cartela habitual de preferências, com raízes bem fincadas. Pensando o processo de formação da nossa literatura, dialoga com Antonio Candido, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, pelos quais nunca deixou de nutrir certo “respeito-ternurinha”, como sugere já na escolha da epígrafe, de Carlos Drummond de Andrade. Analisando nossos pontos altos, recorre a ficções do porte de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos. Na base da paisagem, norteando o pensamento, multiplicando a profundidade, a sombra do filósofo alemão George Lucacks, autor de Teoria do Romance. Weber é clássico, e Tradição Literária & Tradição Crítica comprova a eternidade do olhar que lança sobre povo e nação, ficção e história, ordem e desordem - sempre na releitura dos seus eleitos.

Estimulado pelo objetivo de relacionar literatura e sociedade, legítima missão à linhagem de Weber, e título de clássico recorrente ao longo do livro, o grupo de 14 textos compõe um sofisticado painel das discussões formativas mais relevantes da nossa historiografia crítica. A complexidade aqui está no intercruzamento, perseguido também, do pensamento brasileiro com as ficções mais profícuas da nação. Discutindo afastamentos e zonas de contato entre as teorias de Candido, Schwarz, Raymundo Faoro e outros tantos, em Algum “desconforto crítico”, Weber revitaliza a obra de Machado de Assis, construindo sua própria Capitu, ao mesmo tempo em que remete às construções de Schwarz sobre as meninas do bruxo do Cosme Velho. Partindo do título do livro de poemas de Guilhermino César, também crítico e historiador, em Arte de Matar, desconstrói o discurso contemporâneo das desconstruções, numa metateoria repleta de ironia, reivindicando a validade das análises marxistas que buscam relacionar literatura e sociedade. Clássico, sem dúvida, inclusive nas críticas.

Quando discute diretamente formação, seja crítica ou literária, Weber ratifica a potência de um pensamento que resiste mesmo diante das flutuações teóricas típicas do meio por onde transita. Sua compreensão da importância de Antonio Candido, bem como das relações tecidas entre o crítico e seus seguidores, ainda que distanciadas em tantas instâncias, ajuda a explicar não apenas os (des) caminhos da nossa literatura como também a própria consolidação da experiência intelectual brasileira. A riqueza da abordagem encontra-se nos desdobramentos infinitos: enquanto desvela a literatura por meio da estrutura social, e a própria sociedade por meio da ficção, Weber ainda incute significado nos desdobramentos da trajetória de cada um dos críticos com quem dialoga, ao longo dos ensaios. O Candido autor de Formação da Literatura Brasileira, por exemplo, difere em muito do ensaísta de Dialética da Malandragem, quando já revia os próprios vácuos teóricos. Lançar luz sobre tais nuances, imperceptíveis muitas vezes, é um empreendimento executado com cuidado (e raro respeito) pelo pesquisador.

Dotado de incisivo espírito crítico, até mesmo quando discorre sobre os seus mais caros companheiros de jornada, Tradição Literária & Tradição Crítica oferece lições definitivas ao leitor sobre o que é ser brasileiro. Discute nossa formação, literária e crítica, apontando pontos culminantes e seqüestros impróprios; revê e relê nossos clássicos, incentivando o consumo permanente; apresenta novas entradas de leitura, expondo em muitas páginas abordagens diferenciadas e originais, sobretudo nas análises de Machado de Assis e Guimarães Rosa; homenageia um método de trabalho que permanece contemporâneo mesmo em meio à enxurrada de novidades, ao mesmo tempo em que se posiciona no centro dele, fazendo parte, agora ele próprio, Weber, de uma tradição que ajudou a esboçar, construir, pensar, analisar, consolidar.

Tradição Literária & Tradição Crítica interessa a qualquer brasileiro. Estudiosos e curiosos encontram aqui uma chance única de conhecer um olhar apurado sobre os atos mais definitivos da crítica e da literatura brasileiras. Ex-alunos e colegas têm ainda mais sorte: as 167 páginas de ensaios nos levam de volta às salas de aula, palco no qual o autor apresenta ao vivo as lições ofertadas aqui. Essa, sim, é a melhor parte.

Jade Martins é doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina.

* Texto publicado no caderno DC Cultura, do Diário Catarinense, em 17 de outubro.

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