quarta-feira, 21 de outubro de 2009

meus mais (parte dois)

:: Palmeiras Selvagens (William Faulkner, 1939)*

"Estamos entre a dor e o nada", sentencia uma das personagens centrais da narrativa, o médico e virgem Henry Wilbourne, de 27 anos. Charllote, a perturbada companheira, casada e mãe de duas filhas, ouve calada, atada aos próprios fantasmas. Tentando driblar os sofrimentos indizíveis desta paixão de verão, o casal exila-se numa praia, de frente para a natureza selvagem. Ilhados, então, apenas um e outro, potencializam ao máximo as feridas e exercitam alguns tipos cruéis de intimidade: rancor, ódio, mágoa, desencontros, desacertos.

Palmeiras Selvagens, a história de (des) amor, é apenas uma das partes do romance de Faulkner. O Velho, apelido do Rio Mississipi, compõe o restante da obra, recebendo o mesmo número de páginas. Deslocado da temática anterior, e estruturalmente recusando qualquer elo narrativo, o escritor esmiúça aqui a luta de um presidiário para sobreviver à furiosa enchente, após cair na água durante o translado de bote e ser tragado pela correnteza do dilúvio.

Aparentemente, não há conexão entre as duas fatias. Conhecido pela habilidade na arquitetura dos romances, pensados e erguidos a partir de sofisticados artifícios, Faulkner agora dispensa qualquer intersecção, recusando os manjados (e muitas vezes necessários) cruzamentos ao fim da narrativa. Não espere explicação, nem alento, sequer sugestão. Ainda assim, concluída a leitura, permanece uma impressionante sensação de que estamos lendo versões diferentes de um mesmo ato, o ato da resistência.

Autor (por excelência) das mazelas e idiossincrasias do sul americano, projeto central da sua ficção, Faulkner é especialista no retrato dos limites da experiência humana. Até quando resistimos? Até onde vai a nossa força? Quanto possuímos de fé? Somos corajosos ou acomodados? Em Palmeiras Selvagens, anterior ao Nobel de 49, esta espécie de ética da persistência costura os grandes achados do texto, unindo, relativamente, as duas narrativas.

O presidiário que inspirou seu assalto em leituras de folhetins tenta desesperadamente manter-se vivo em meio à fúria destrutiva da natureza. O casal insólito (e proibido) luta para sobreviver diante das impossibilidades do contemporâneo. Charllote, aparentemente frágil, é quem mais insiste: "aguento meses seguidos de fome no estômago, mas não aguento um minuto sequer de fome no peito". Uns remam, literalmente, contra as forças da chuva. Outros, contra as forças internas. Para Faulkner, são todos uns desgraçados, mortificados por batalhas inglórias.

Se o tema da resistência insinua-se nas entrelinhas, não há quase nada de factual no plano aparente. O visto não passa de uma sequência de cenas, historinhas, cotidianos. O ápice do drama, inclusive, está já na abertura do romance: o aborto de Charllote, que marca a consequente condenação de Henry, autor do feito, a 50 anos de cadeia, por homicídio. Na segunda narrativa, o auge da atividade ocorre quando o presidiário ajuda num parto, roçando certo contato com a trajetória do casal enclausurado, e desafiando as leis da lógica e do dilúvio.

Enquanto o primeiro texto parece determinado segundo leis trágicas, sobretudo pela plena consciência dos envolvidos na inviabilidade do projeto que tentam manter de pé, persistindo dia após dia no erro, O Velho mantém certa dose de humor, característica do autor (evidente em Enquanto agonizo**). Até mesmo pelo empenho bizarro do presidiário: chegar a qualquer lugar onde consiga se entregar à polícia e voltar à cadeia. Quando consegue retornar, finalmente, enfrenta uma horda de burocracia para se "alojar" porque é dado como morto.

De resto, pouquíssima ação, justificada num projeto ficcional calcado na reconstrução da vontade humana como uma pálida intenção diante das verdades do mundo. As personagens do autor estão sempre à deriva: da história, da natureza, dos desejos, da experiência, da vida. Se a enchente é obra do acaso, nos obrigando à entrega, o amor aqui também recusa o paliativo da escolha: imperativo, ele devora os sujeitos. Não temos, no fundo, a oportunidade de agir.

Em Faulkner, o monumental está sempre no entrevisto. O mundo quase sempre é sugerido como um espaço inabitável, embora tal sentença não se torne texto em nenhum momento. Há sempre algo maior que assombra a existência individual - por certo um resquício escamoteado das incertezas levantadas pelos anos de Guerra Civil, na construção do ethos sulista. Talvez por isso não seja o fracasso que derrota o indivíduo faulkeriano, e sim a desistência.

Ao passo que economiza na ação, esteticamente constrói uma obra majestosa (e o adjetivo não é gratuito). Especialista em escrever sobre nada, Faulkner narra com toda a categoria o insólito, descortina o corriqueiro, transforma cenas prosaicas em narrativas construídas à facão, num labirinto de escolhas cuidadosas e originais. Posicionar a humanidade entre a dor e o nada foi a forma encontrada aqui para dar voz a uma das máximas da sua civilização: estamos sozinhos, somos sozinhos, do princípio ao fim. E a maneira como realiza tal empreitada, com frases sinuosas, recortes imprevistos, monólogos sem travessão e todo tipo de digressão, sobretudo as descritivas, esmaga qualquer escritor. Qualquer, mesmo. Mestre absoluto.

* Sei, sinto e reconheço a superioridade de Luz em Agosto, romance de 1932, para a compreensão da obra do autor. É gritante a diferença, em relação a qualquer outra experiência literária, e eu mesma acho um dos livros mais bem escritos de TODOS os tempos. Ainda assim, mesmo bem menos ambicioso, não tão perfeito na mescla de tema e estrutura, não tão representativo da sua ética e dos seus dilemas, meu eleito sempre foi/será Palmeiras Selvagens. Sem qualquer razão além da mais indesejada no cenário crítico: me fala ao coração.

** Nunca consegui concluir O som e a fúria, de 1929. Ainda espero triunfar na empreitada.

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