terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

1ª pessoa, masculino

Senti apenas tédio quando cheguei à Inglaterra. Amava Lívia, e já não era mais possível refutar a óbvia assertiva. Amava-a para além dos raros encontros nus, amava-a para além da perfeição dos traços e das evasivas, amava-a para além da ficção radiosa que carregava de um canto a outro como um tesouro ofertado a raros merecedores. A ficção era o seu produto mais bem acabado, denso e refinado, e desejá-la fora daquele espaço exigia uma intensidade que eu não imaginava dispor. Uma intensidade que começou a despontar no exato instante que observei suas pernas compridas e seus olhos puxados invadindo a sala de reuniões pela primeira vez. Era o ano de estréia da minha faculdade.

Para meu desespero, todos repararam a sua presença, e lutaram para adivinhar as disciplinas reivindicadas, e devoraram o olhar azul e oblíquo, e imaginaram suas costas ao sol e seus braços finos despidos de mangas e babados - "seria ainda mais bonita nua?" Alheia às especulações, ela atravessou o salão sem se intimidar com as expressões atabalhoadas ou os ruídos do próprio salto, sempre no mesmo passo decidido, suave mas compassado, num ritmo exclusivo dela. Olhava para a frente, presa num ponto fixo, absorvida por certo universo interno que, já ali, parecia envolvente como um bom livro. Apresentava uma segurança gratuita, em tom de desafio, como se já tivesse enfrentado um escândalo imprevisto e terrível.

Antes mesmo que ela se acomodasse, meus pensamentos já tinham arrancado o seu vestido cor-de-rosa, beijado com força seus lábios escurecidos pelo batom e possuído cada pedaço da sua alma com tranqüilidade e força. Quando acendi o primeiro cigarro, depois de fazê-la gozar três vezes, a versão vestida de Lívia escolhia um lugar ao meu lado, numa das tantas cadeiras vagas, ainda cheirando a tinta fresca. Sentou, bufou, espalhou os pertences sobre o apoio estreito. Na seqüência, virou-se para mim e abriu um sorriso brilhante, o único daquela tarde. Foi como receber um convite para a mais secreta fraternidade.

Retribui, forçando frieza, e protelando qualquer entrega ao deslumbramento. Cochichei em seu ouvido, disposto a recusar o atordôo pelo singelo sorriso de abertura: "Estão combinando o horário das reuniões mensais com a diretoria". Ela rebateu: "Como serão aos sábados, nem me interessa". E riu, sozinha. Se desconfiasse que eu era o diretor, a ironia seria bem maior, sem dúvida.

Hoje eu sei como Lívia funciona.

3 comentários:

  1. Respondendo a tua pergunta, nao tenho blog... apenas frequento meus preferidos. E o teu é um deles. Esse é um trecho de Tender is the Night? Já coloquei na minha lista de must-read books! Obrigada!

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  2. Não, não. Esse trechinho é meu mesmo. ;o)
    De um livro que comecei a escrever agora, enquanto protelo a publicação de outro - risos.
    Postei um pedacinho de "Suave é noite" nas priscas eras desse blog, deve estar na última página. Vai lá ver; é pequeno mas significativo. Beijo, e obrigada.

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  3. Frases firmes e sensualidade elegante. Adorei. Beijos!

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