sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

velhas letrinhas

Na entrada do jardim, entre flores desbotadas e folhagens grandiosas, uma placa impedia devaneios maiores: acesso proibido à noite. Encararam a ordem, em roupas de banho. Olharam-se, trocando sorrisos imediatos. De mãos dadas naquele novo risco, inocente agora, desafiaram o imperativo, mais uma vez, mergulhando na piscina sob as estrelas caducas do céu bahiano. A temperatura da água competia em frieza com os buracos fundos do estômago. Talvez tudo estivesse sendo decidido naquele instante: a dimensão do futuro, as páginas cheias de rasuras, o sentido do passado, a longa estrada de feridas. Poderiam ter sido melhores um para o outro, sem dúvida. Se tivessem previsto tamanho sofrimento, talvez conseguissem engrossar os escudos. Impossível aquilo também, impossíveis as felicidades distantes. Talvez tudo já tivesse se decidido há tempos, à revelia das vontades mais legítimas. Sustentaram o silêncio por longos minutos. Ela mergulhou de novo, aproximando-se dele, encostado na borda. Renovada pelo conjunto de braçadas, Lívia encontrou coragem para começar pelo pior dali:

- Eu te quis demais àquela noite.

Frederico apenas sorriu, os olhos quase fechados. Há meses aguardava qualquer confissão sobre a sua madrugada mais frustrada. Se nunca acreditou tanto no futuro quanto naquelas quatro horas espremidas entre vícios da rotina, jamais alcançara o mal da manhã seguinte. "Nossas glórias serão sempre ingratas" - ela ainda sugeriu, na despedida, taça de vinho tinto na mão. A inviabilidade do enredo, as promessas fajutas trocadas em mesas de bar, o olhar trêmulo de pavor, a mistura da maior dor à grande benção, tudo aquilo partiu-o. Partiu-o em tantos que se escondia no hotel desde então: encontrara fantasmas demais perambulando nas ruas. A solução, supostamente temporária, já devorara alguns anos de sua vida. Do momento que escondeu as alianças no bolso até aquela nova infração, jamais ultrapassara os portões de entrada para o lado de lá, o lado do mundo, o lado da vida, o lado de Lívia. Fazia 2 anos, 3 meses e 23 dias, e ele jamais se perdeu nas contas. Desnorteado desde o inesperado telefonema, após alguns ensaios infrutíferos em frente ao espelho, conseguiu responder, ainda rouco de surpresa:

- Eu também te quis demais àquela noite.

Olharam-se num silêncio quente e úmido. Ele espiou os arredores, resignado com os esqueletos do armário. Por mais sujas que estivessem suas mãos, sempre soube que reencontraria aquela voz. Ela voltou à dor, à perda, às negativas. Gostaria de reescrever os princípios todos, mas talvez não houvesse mais tempo. Parecia sempre tarde para os imprescindíveis. Quis chorar pela fraqueza, pela recusa, pelo medo. Encarou Frederico, que sorria um sorriso de compreensão. Ele entendia, de fato. Não sabia exatamente o quê, nem como, mas entendia. Compreendia o fracasso e a dúvida, os passos apressados e a imaturidade irresponsável, a fuga melodramática pela porta dos fundos e os olhos sempre borrados de rímel. Afastando qualquer desespero, recorreu à lembrança salvadora: jamais outra oferta alcançara aquela dimensão. Espanou os pós todos, do coração aos saltos, da cabeça fervilhando, da vida equilibrista. Encerrou a questão:

- E ainda não amanheceu para mim.

(livro de gaveta)

Nenhum comentário:

Postar um comentário