segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A unanimidade dos clássicos*

* (versão do autor)

Trinta anos após sua morte, Nelson Rodrigues segue como o grande protagonista do teatro nacional

Presença marcante na produção artística e no debate cultural do século XX, Nelson Rodrigues consolida-se cada vez mais como um dos autores fundamentais do Brasil moderno. Repórter policial, redator de jornal, consultor sentimental, cronista do cotidiano, folhetinista de sucesso, tradutor fantasma, romancista esporádico, contista popular e autor de uma dramaturgia aplaudida em todo o mundo, construiu uma obra capaz de resistir às ferrugens do tempo, atual e contemporânea numa diversidade de níveis poucas vezes alcançada por seus pares.

Historicamente, a atualidade rodrigueana ecoa a partir da fixação, agora irrevogável, do nobre epíteto de “pai do teatro brasileiro moderno”, pioneirismo reconhecido já em sua segunda e mais famosa peça, Vestido de Noiva, de 1943. A visão em retrospectiva permite responsabilizá-lo ainda pela paternidade do próprio teatro brasileiro, antes da sua estréia um apanhado difuso de personagens influenciadas por contextos estrangeiros e textos despreocupados com especialização e/ou autoria, sem continuidade ou relações - na melhor das hipóteses, um teatro feito no Brasil, geograficamente falando.

Se a relevância histórica associa-se à modernidade poética implantada na dramaturgia brasileira, bem como à completude do nosso processo de formação, a potência estética do projeto rodrigueano reside na complexa utilização dos elementos literários, tensionando estilos e gêneros. Pioneiro na edificação de um teatro rico em referências, sintetizou influências diversas com exclusividade, atraindo a crítica (e repelindo também) pelo sincretismo estéticos das suas peças, hoje um recurso recorrente. Durante a trajetória iniciada em A mulher sem pecado, de 1941, até A serpente, de1979, seu último texto, dialogou com correntes clássicas e marginais, alimentando-se de surrealismo, expressionismo, nonsense, noir, grotesco, melodrama, trágico e tantos mais. A marca estética de sua dramaturgia é justamente a ênfase nesta idéia bastante contemporânea de acúmulo, limite e ausência quase absoluta de contenção.

Se é a mistura de gêneros que preserva sua inequívoca atualidade estética, politicamente cada uma das peças consegue construir um olhar exclusivo sobre o Brasil e os brasileiros, eixo principal de toda a sua dramaturgia. A recriação temática de um país atordoado diante das transformações daquela sociedade (Anos 1950 e 1960) ressignifica limites típicos da nossa própria pós-modernidade, abordando, simultaneamente, um tempo que luta para permanecer e outro que teima em se adiantar, contraste que persiste até os dias de hoje, comum às nações em desenvolvimento.

É no embate entre o passado do luto fechado, do sexo limitado ao matrimônio, dos olhares de soslaio e do namoro de portão, e as demandas da pílula anticoncepcional, do sexo livre, do poder das mulheres, da apologia aos jovens, dos umbigos desnudos e dos biquínis que nasce a visão trágica e bipartida de uma dramaturgia que tenta recriar uma tensão típica da fronteira, contemporânea ao próprio autor e ainda nossa.

História, Estética, Política: três vezes pioneiro, inovador, renovador. Nelson Rodrigues pode ser lido hoje como o autor brasileiro que melhor se debruçou sobre as ambigüidades de uma nação dilacerada em tão diversas camadas. Instaurar essa tensão no processo interno de sua obra, priorizando sem medo as flutuações entre fronteiras, persistentes até nos nossos tempos líquidos, torna seu pensamento não apenas atual como definitivo. Transforma-o, ainda, ironicamente, numa daquelas unanimidades que ele tanto combateu. Uma unanimidade essencial.

Jade Gandra Dutra Martins é pós-doutoranda e autora da tese Nelson Rodrigues e sua cena: dramaturgia da tensão, cinema da síntese.

(Texto originalmente publicado no DC Cultura / Diário Catarinense, 15/01/2011)

Um comentário:

  1. Quero saber mais sobre esse pós-doutorado! :)

    e eu aqui ralando para terminar o meu mestrado...

    Beijos,
    Rafa

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