quinta-feira, 15 de outubro de 2009

trechinhos

"O chacoalhar vagaroso e lento do táxi desviava sua atenção das lombadas frequentes. Enquanto o sono sussurrava palavras de consolo, sentia o desejo da conversa definitiva, antes tão vago, transformar-se em imperativo; diferentemente das outras vezes, o pensamento agora tomava a forma de decisão, à espera da maneira mais rápida e indolor de alcançar o mundo. Desde a chegada na cidade, reconhecia a necessidade daquela ordem penetrar de maneira irremediável dentro de sua intimidade; então, não dependeria mais de palavras de encorajamento nem ensaios em frente ao espelho. Seria logo, na manhã seguinte, e a nova dor originava-se justamente do caráter inadiável recém-impregnado na situação. Com os pensamentos um tanto desordenados, mais pelas últimas horas levadas diante do passado inacabado do que pela certeza cruel dos próximos passos, pagou o motorista e lhe desejou boa noite. Custou a abrir o pesado portão de ferro e procurou as partes secas do chão para evitar encharcar a sola do sapato na grama úmida de dezembro. Entrou em casa cuidando com o barro e se assustou com o relógio marcando quatro e trinta. Quatro e meia da manhã, quase cinco, já o outro dia, o dia que apagaria mais aquela luz. E se resolvesse tudo aquilo naquele instante? Não, não, não era possível. Embora tenha cogitado durante alguns segundos, olhos presos no telefone preto, coração batendo sem ritmo à procura da melhor maneira de dizer nunca mais, agora já era, já foi, desistiu do telefonema ao assumir que não estava completamente sóbria, nem completamente sã, com completamente equilibrada. Faltava-lhe estrutura para não se comover e segurança para se manter de pé, depois de todas aquelas taças, sobre os centímetros a mais da sandália. Pelo receio de pôr tudo a perder, a velha precipitação companheira dos seus momentos cruciais, no quais era tomada pela perigosa dificuldade de manter-se parada, à espera da hora certa de ir adiante, jogou-se na cama sem trocar de roupa, ainda com os restos da maquiagem. Não teve tempo de pensar em nada, apenas fechou os olhos e dormiu, embalada pela mistura de bebidas, pelo sono bom às vezes trazido pelo álcool, pelas tristezas que começavam a ir embora, pela valentia com que encarou o sorriso de canto de Daniel, por ela mesma, a própria Nina, que voltava a ser, ainda bem, voltava a ser aquela menina valente que se recusava a alimentar o sofrimento. Antes de cair no sono, prometeu, de si para si: jamais sentiria saudade dela mesma de novo. "

(ibid idem)

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