terça-feira, 27 de outubro de 2009

surpresa das boas

Nunca fui tarantinomaníaca, longe disso. Do diretor nerd & over & pop, gosto de Cães de Aluguel, cujo roteiro considero genial, e Pulp Fiction, bacaníssimo (principalmente pelo retorno do carismático John Travolta). Adoro também, e muito, Natural Born Killers, mas como Tarantino garante que Oliver Stone destruiu o roteiro dele, não posso reinvindicar o posto de fã (ainda que Juliette Lewis permaneça até hoje como minha musa suprema). No mais, nunca consegui terminar Jackie Brown, muito menos Kill Bill, chatíssimos - na minha modesta opinião de poucas referências. Despida, então, de QUALQUER expectativa, fui assistir Bastardos Inglórios, crente de que a apropriação do tema 2ª Guerra Mundial pelo amante dos miolos estourados resultaria em algo, no mínimo, kitsch e mal intencionado.

Adorei me enganar redondamente.

Bastardos Inglórios reúne as melhores armas do diretor (sem trocadilhos): diálogos afiados, roteiro bem amarrado, estruturação circular, referência pop, trilha surpreendente, violência gratuita, releitura dos seus clássicos (jamais os clássicos da história do cinema), cultura do pastiche, kitsch como orientação e aquelas tantas oitavas acima, sua marca mais original. Desta vez sem picotes (estréia no estilo?), o roteiro é dividido em capítulos que narram duas histórias mais ou menos paralelas, com uma penca de rabichos pelo meio (destaque para a espiã trapalhona de Diane Kruger e a maravilhosa historinha do herói de guerra ovacionado pelo povo alemão, apaixonado pela maior inimiga da sua amada pátria).

A primeira história central é a da bela Shosana, única sobrevivente de um massacre judeu, dona de um cinema na França. A segunda, do bando Bastardos Inglórios, "sanguinários" dispostos a exterminar o nazismo com as estratégias mais primitivas ("o negócio é abater todos os uniformes nazi"; "só vale escalpelado"). A motivação para ambos os núcleos é a mesma, mas nenhum deles sequer desconfia da coincidência, o que rende momentos muito engraçados, sobretudo no desfecho - uma sucessão de confusões que, graças ao improvável sucesso, culmina numa espécie de justiça tardia para toda a civilização ocidental ainda assombrada pela ascensão de Hitler.

Descontado o primor do roteiro, repleto daqueles viciozinhos deliciosos de Tarantino, como concluir sempre com alguma gag exposta no primeiro terço do enredo, o filme chama a atenção por conseguir imprimir ao evento de horrores uma visão exclusiva (e original). A Alemanha nazista de Tarantino é o território de proliferação do kitsch, do bizarro, do freak, do estúpido, do nonsense e do gratuito. Tudo aqui rima com simulacro, absurdo - inclinação que potencializa ainda mais os préstimos da exploração da violência gratuita, colocada à serviço de uma história (História) que se alimenta desta mesma aviltante gratuidade.

Bastardos Inglórios apela para o pastiche como estilo de narrativa, o que fica bastante evidente já a partir do segundo capítulo*, sobretudo com os histrionismos de Brad Pitt no papel de Aldo, o chefe do bando (atuação que não agride, já que dialoga com a estética do filme). A 2ª Guerra Mundial aqui é refeita com base numa paródia (relativa) que consegue ser debochada, crítica e respeitosa ao mesmo tempo. Diferentemente de A vida é bela, que imbeciliza a tragédia dos campos de concentração ao apostar num enredo fabular, Tarantino constrói uma versão inteligente que nos traz um Hitler histérico, um Goebbels medroso e um chefe da polícia nazista vaidoso e confuso. E já estava na hora de alguém sujar as mãos pra falar dessa gente com menos dados e mais rancor.

Bastardos Inglórios ainda acerta as contas com o passado, apostando num desfecho apoteótico e insano, bem à Tarantino, que diverte ao mesmo tempo em que nos faz pensar sobre os rumos do mundo pós-Shoah**. E conseguir reler um tema de tamanha complexidade, sobretudo tão afastado do seu próprio universo, não é pouca coisa.

Bonzíssimo - mesmo sem a Juliette Lewis.

* Em tempo: os primeiros 20 minutos do filme já compõem o rol das melhores aberturas da história do cinema (alimento essa lista há anos). Muito, muito, muito bom. Magistral.

** Pra quem não sabe, Shoah é o termo hebreu que designa catástrofe. Vem sendo utilizado no lugar de holocausto, que significa sacrifício, por ser considerado mais adequado ao massacre perpetrado pelos nazistas e aliados contra os judeus (só fui saber disso na pós, quando estudos de testemunho da Shoah viraram uma das minhas obsessões, por isso a explicação).

5 comentários:

  1. Adorei sua resenha! Faz justiça ao filme. Depois de ler, tive vontade de rever.

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  2. Concordo sobre a abertura. Fiquei curioso pra conhecer sua lista.

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  3. adoro seu estilo de escrever!

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  4. Gostei bastante da resenha. Bastardos Inglórios se tornou, para mim, o melhor de Tarantino. Já saiu de cartaz, mas quando chegar em DVD vou ver de novo agora observando pela sua ótica.

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