terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Presentes 2009

A gente nunca tinha se cruzado, fato raro na cidade-ervilha. Depois da indicação de uma amiga jornalista, fui contratada para escrever o seu perfil literário, texto principal do recém-criado site de divulgação do trabalho delicado da designer. Virou o freela mais especial do ano, graças à simpatia imediata. Sentimento compartilhado, Laurinha já não é mais (apenas) uma coleção de letrinhas.
Ela agora faz parte do show.

O triunfo do plano B

Encontros com o papel

Laura tomou um susto quando reconheceu o objeto camuflado pelos laçarotes do pacote: uma máquina de costura cor-de-rosa, especialmente pensada para o público infantil, capaz de dar pontos de verdade. Tinha seis anos e se acostumara a acompanhar a rotina da avó costureira, para quem enfiava algumas linhas na agulha e cortava uns tantos retalhos. Fascinada pelo presente, atravessava as tardes entretida com as próprias invenções. Em vez de roupinhas de boneca, porém, perverteu a genética apresentando uma surpreendente coleção de bloquinhos de papel acabados com esmero. Já ali, menina ainda, insinuava-se o embate pela escolha do protagonista da sua rotina: papel ou tecido?

Dez anos depois a batalha parecia concluída: a ligação inexorável com o papel simplificou os dilemas de juventude ao acelerar a escolha pela faculdade de Design Gráfico. Já dentro do curso, aproveitou ao máximo cada lição: colecionou papéis, matriculou-se em cursos extraordinários, estagiou numa editora e oficina tipográfica, alcançou as notas máximas. O trabalho de conclusão de curso não deixou dúvida da dedicação: na área da semântica dos produtos, pensou uma produção gráfica com potencial para acompanhar a significação do conteúdo do livro.

Mas Laura nunca conseguiu se encontrar de fato no design. Influenciada pelo vazio daquela realização pela metade, começou a agrupar planos alternativos, caso tudo desse errado. Antes mesmo de se formar era importante enumerar saídas, válvulas de escape, projetos alheios àquela realidade que já lhe parecia um tanto gasta. Na época do trabalho de conclusão de curso, angustiada com a proximidade da formatura, e as angústias trazidas com o fim da faculdade, decidiu que lhe faltava um trabalho manual. Andava cerebral demais.

O chamado das agulhas

Uma amiga reavivou sua antiga inclinação à costura, comentando sobre um curso simples e prático, daqueles repletos de donas de casa ávidas pela técnica perfeita para pregar botões e fazer bainhas. Criou então uma nova rotina: todas as quartas-feiras desembarcava na classe, onde passava aproximadamente cinco horas costurando tudo o que tinha vontade. Na primeira aula, já tentou levar para casa seu primeiro produto, um porta-moeda. O resultado não foi dos melhores, mas já começava a tomar gosto pelo processo. Logo em seguida, fez uma bolsa de mão, pequenina e modesta. Fechou o curso com uma boina, tornada pop pela professora, que passou o molde para todos os alunos que apareceram depois de Laura.

Tirou o pó da máquina de costura da mãe e seguiu com as lições. Já encontrara até um rascunho de estilo: entendia-se melhor na costura de acessórios, e não de roupas; apresentava facilidade para moldes, conseqüência da dedicação às aulas de geometria descritiva; e criava com a mão no material, sem qualquer tipo de desenho. Construiu, então, sua primeira echarpe, enriquecendo o produto com a aplicação de dois tecidos, um sobre o outro – uma inovação no universo das echarpes. Sem nenhuma pretensão, começou a vender entre amigos e familiares, anotando os pedidos com gosto e lutando para fixar os preços – até hoje vender é um verbo que prefere não conjugar. Tudo parecia caminhar; ela só não se lembrava ainda da máquina cor-de-rosa.

Uma vitória imprevista

Quando a formatura chegou, as coisas já pareciam bastante distintas do marco zero, cinco anos antes, quando optara pelo mundo do desenho. A vitória do papel sobre o tecido já não lhe parecia legítima. As horas sobre a máquina de costura desconstruíram o conceito de hobby para remexer de modo irremediável em sua rotina – logo com ela, que adora a possibilidade de tomar café da manhã sempre no mesmo horário e acredita que uma das rimas mais preciosas é “felicidade” com “tranqüilidade”. Cada vez mais certa da invalidade do futuro sacramentado na academia, abandonou a cidade mais uma vez e partiu em busca da sua verdade, aquela que não cabe em diplomas.

Na capital paulista, passou quase um ano estudando moda. O plano B, título antes oferecido aos retalhos e as horas sobre a máquina, já se transformara em projeto de vida, com toda a importância do principal. A mudança ocorreu de forma tão espontânea que hoje é difícil definir o ponto da virada. Simplesmente não havia outro caminho. E se queria se tornar profissional, pensava, teria de aprender sobre moda, um território bastante distante da sua experiência até ali. Graças às disciplinas cursadas, entrosou-se com os estilistas mais criativos do país, além de receber noções fundamentais de lógica de mercado, estruturação de coleções, calendários próprios do circuito.

De volta a Florianópolis, procurou um apartamento onde pudesse dar partida e começar de fato. Ajeitou os retalhos numa sala iluminada, agrupou botões e zíperes por cor, construindo um cenário delicado como sua própria criação. Na pequena sala-ateliê, passa boa parte do dia, recusando o imperativo do cartão-ponto, trabalhando quando tudo flui, e buscando referências quando algo inexplicável parece empacar o processo.

O estilo consolidado

A nova rotina, de design de acessórios agora, também já guarda alguns segredos. Como buscou a costura como um trabalho manual, continua abolindo os croquis. Cria com as mãos, sem qualquer interferência, e tendo em vista o material que encontra. Para facilitar, mantém toda a matéria-prima numa arrumação milimétrica: botões, tecidos brilhosos, algodão, zíper, joaninhas, passamanaria, fitas, miçangas, cetins. Quando começa a trabalhar, olha para os lados, bate o olho em tal ou qual coisa, decide-se. Senta e começa a construir, como se ainda estivesse lidando com geometria espacial na faculdade.

Outra peculiaridade do seu estilo é o aproveitamento total de qualquer tecido sobrado do corte. Laura odeia obras, e se empenha em dar vida aos retalhos. Nas suas mãos, qualquer pedacinho de tecido constrói um novo produto, e assim muitas peças derivam dos produtos maiores, construindo uma lógica bastante especial. Com naturalidade, fluindo, como deve ser tudo na vida, uma de suas verdades mais repetidas. Sempre de acordo com o material e o desejo, num processo intransferível e legítimo. Intransferível porque é apenas de Laura, com sua mania de só decidir depois de muito observar, processando com calma antes de interferir, seja na vida ou na arte. Legítimo porque nasce lá dentro, brotando com espontaneidade, sem qualquer intervenção de vagas disciplinas de planejamento.

É com esta naturalidade que ela cozinha, um dos hobbies favoritos: abre o armário, seleciona os ingredientes e cria os pratos, de improviso. E é assim que organiza seu espaço também, seja as roupas do armário, seja a gaveta destinada à coleção de papéis, firme e forte na rotina da designer. A diferença é que a tipografia agora é mais um dos seus hobbies, junto às canções de rock contemporâneo, às organizações de gavetas, às coleções de fotos, às viagens realizadas. Se a tipografia é mais um hobby, costurar já é a profissão.

Basta olhar a pequenina máquina de costura cor-de-rosa numa estante logo acima da sua mesa de trabalho. Ela agora está em todos os lugares, presente, perene, permanente.

2 comentários:

  1. querida, li o texto sobre a laura sem saber que era obra sua. agora que sei, gosto mais ainda. laurinha é mesmo muito especial, que bom que fazemos parte da mesma teia, nós 3. beijo grande, e um lindo 2010!

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  2. a jade é a pessoa mais sensível para escrever um perfil. o texto ficou lindo. me sinto feliz de ela tê-lo escrito, mas mais ainda de saber que a nossa amizade ultrapassa o tempo e parece que já nos conhecemos há anos. amo isso!

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