quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A dor que ninguém mais sente*

Respirou fundo, contemplando a feiúra desajeitada dos arredores de Paris. Avistou o céu, límpido como naquela manhã tão distante, dentro do táxi lento, e lembrou que dali a poucos dias estaria olhando para cima sob outro ângulo, o temido ângulo das terras do sul. Desceu os olhos até o chão, ainda com alguma esperança, mas logo relacionou também aquela morte à velha vitória do cotidiano caprichoso: os dedos dos pés continuavam rígidos e tesos. E talvez continuassem assim para sempre, tensos como ela própria, perdidos em dramas exclusivos, ao mesmo tempo vítimas e algozes daquela dor inacessível e única. Relaxou-os um a um, triste, em busca de novas crenças para disfarçar o sofrimento; encontrou de volta aquela fé insistente, sempre plena de palavras doces e promessas infalíveis. Afinal, partira do próprio Tom a redentora sugestão: só a grande dor traz liberdade, e quase ninguém recebe esta chance.
(livro de gaveta)

* Publicação é meta 2010.

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