sábado, 4 de abril de 2009

Perfis Literários - Parte 1

Em 2008, trabalhando há três meses na Associação dos Magistrados Catarinenses, inventei uma seção de perfis literários no jornal mensal da entidade, chamado O Judiciário. A idéia era começar a treinar para um projeto que sempre quis elaborar, um livro de perfis com personalidades da cultura catarinense, aproveitando o tempo ocioso da jornada de trabalho, bastante vasto na época, para entrevistas infinitas e reescrituras persistentes. Rendeu oito perfis, sempre com personagens ligadas à área jurídica, mas não necessariamente magistrados, até a minha saída, nesta última semana. Renderia 800, sem dúvida, tamanha a disposição com que me meti no projeto. O saldo, embora pequenino, é polêmico: meu texto preferido é justamente o primeiro, publicado em setembro do ano passado. Abaixo, os passos da estréia.

No compasso do avesso, o triunfo da contradição

Ele não sabe precisar o mês, o ano ou a rua: jamais esqueceu, porém, o sentimento de felicidade daquela tarde ensolarada em Laguna. Tinha apenas 15 anos, mas o imperativo de dirigir o jipe da família predominava nas obstinações épicas tão típicas da juventude. Após muita insistência, arrancou do irmão Leo, seis anos mais velho, as explicações teóricas para uma boa direção. Lutando para perverter deficiência em teimosia, Leo explicou o bê-a-bá com a paciência legitima dos professores preferidos dos pupilos. O menino ouviu com atenção e avistou a bela paisagem, preenchida ainda apenas por pescadores da comunidade local, despida de trio elétrico e cantoras de refrões repetitivos. Não contou tempo: segurou com firmeza o volante, repassou mentalmente uma a uma as coordenadas e pisou fundo o acelerador. Em dois minutos, inventou uma maneira nova de guiar, empurrando o pedal da embreagem com o pé esquerdo, driblando a pior seqüela possível da poliomelite da infância. Voltou dirigindo para casa, vencendo morros e descaminhos com a destreza dos experientes, sob os olhares atônitos e orgulhosos do irmão, reduzido agora à condição de caroneiro. Antes de perder de vista o Farol de Santa Marta, reconheceu pela primeira vez a sua vocação mais legítima: desbravar caminhos alternativos.

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No palco do 1° Simpósio Judiciário & Imprensa, Lédio Rosa de Andrade é o único a dispensar o protocolo básico da magistratura: vestia camisa e calça, sem terno, sem gravata. O tema do painel era O direito à informação e a responsabilidade da imprensa, debate desenvolvido entre colegas e jornalistas. Seu discurso destoa do senso-comum, desconstruindo o óbvio, condenando à complexidade qualquer argumento simplório, abraçando a diferença com a mesma recusa à distância aparentemente imposta entre ele e o volante. As teimosias agora são ainda mais assertivas: “Não basta a vasta oferta de informação contemporânea se as pessoas não têm capacidade para compreender e discernir as nuanças”. Quase trinta e cinco anos depois, a fala já tempera com doçura a teimosia do menino motorista. Nas sessões e nas escolhas pessoais, ele é do contra - sabe e gosta disso. Como o jovem alheio a grifes e rock and roll, edificou vida e carreira num universo avesso às convenções. Desafiando o óbvio, chegou aos 49 anos como o segundo desembargador mais jovem da bancada do Tribunal de Justiça. Sempre “sem concessões”: é um dos poucos seguidores assumidos da cartilha do Direito Alternativo.

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Famoso pelo raro repertório, provoca polêmica ao negar corporativismos profissionais, mesmices intelectuais e conformismos diante da falsa objetividade na aplicação da lei. Constrói os próprios padrões, seja recusando o terno ou acelerando o pedal, apaixona-se pouco mas com alguma dose de desatino e convive em paz com sua série de violências secretas e arrependimentos recolhidos. Renega qualquer realeza, qualquer ditadura, qualquer messianismo – inclusive Jesus. Nunca teve heróis: “os grandes homens fizeram o que era para ser feito quando deveria”. Jamais será visto de joelhos numa missa, e recusa até mesmo as de sétimo dia. Embora não se considere radical, é encarado com radicalismo por alguns pares, sobretudo quando define como agiotagem um caso entre empresas, numa sessão de grupo de câmaras. Mesmo colecionando narizes tortos, a ascensão ao cargo de desembargador, segundo o caráter de antiguidade, trouxe uma acolhida favorável, a principal surpresa dos tempos recentes.

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Fora de combate, Lédio aparece com mais freqüência do que o desembargador: dispensa formalidades, sugere tratamento pelo primeiro nome e luta pela convenção do você ou tu, em vez do clássico senhor. Endurecido, sim, mas com ternura – como a frase de Che. Pensa bastante nas perguntas, sem fugir sequer das capciosas, e comenta imprevistos e melancolias sem pestanejar. Quase sempre encolhe os dedos sobre a palma da mão e observa as próprias unhas. É chorão, brinca, mas deveras quixotesco. Sabe retroceder, mas demora a reconhecer os erros. À semelhança da obstinação, liame das cenas anteriores, esconde por trás da fala mansa uma intensidade que transborda, alimento de suas múltiplas versões. Profissionalmente, a teimosia traveste-se de excesso, pressa e acúmulos, uma pulsão para a vida – diria Nietzsche. Ainda estudante de Direito, rompeu um contrato de enxadrista profissional apenas porque precisaria prorrogar alguns meses a formatura, caso abraçasse os tabuleiros. Já magistrado e mestre, abandonou a comodidade de juiz do interior e partiu para um doutorado em Barcelona, encerrando a temporada com um pós-doutorado. Na volta, não sossegou até retornar à graduação, então em psicologia. A enorme distância entre o pesquisador internacional no ápice e o universitário de uma instituição particular de uma pequena cidade do sul parece ter trazido apenas felicidade: a melhor amiga, uma turma nova, a teoria de Freud, um suspiro de juventude. Sem a universidade, impossível também a sua máxima: “Sem psicanálise, não existo mais”.

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Lédio abraça as diferenças com a mesma convicção utilizada na longínqua campanha pela prefeitura de Laguna, antes de ingressar, “por acaso”, na magistratura. Sabe que, no fundo, as cenas mais preciosas da vida são sempre indefiníveis, indizíveis, protegidas de direção ou ensaios. Emocionalmente, contrastes e paradoxos parecem definir as escolhas mais intimas. Para um homem, por exemplo, defende o poder da delicadeza – uma força delicada, alguma bruteza bem dosada. Sua mulher ideal comporta força - é necessário independência, vida própria. Guarda alguma maturidade sobre o mundo feminino: já foi casado três vezes, e possui três meninas. Quando apenas o “carinho” parece capaz de “vencer a guerra”, a própria glória destila paradoxo. Por trás de tudo, em cenas cotidianas ou sessões do Tribunal, uma ânsia persiste em vôo cúmplice e rasante, a ânsia da diversidade: professor, magistrado, acadêmico, enxadrista.

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Às vezes o peso do mundo verga-lhe as costas. É quando se tranca no apartamento apenas na companhia de literatura européia e música clássica. Sem acreditar em deus, nem “nada além do humano”, e vislumbrando na religião uma forma de neurose, acaba por alimentar a melancolia com migalhas do próprio hobby, a leitura, priorizando obras de dilemas éticos difíceis, Tolstoi e Dostoiéviski, e viagens aos pântanos da subjetividade, sobretudo quando divide assento com Freud, pensador favorito. Preferências estéticas difíceis, escolhas que atormentam. Quando se torna custoso contornar o mal-estar, uma imagem desbotada fatalmente retorna: menino, quatro anos ainda, puxado pela mãe assustada pelos corredores de uma associação de reabilitação, geograficamente distante, intimamente cúmplice dele e de cada uma das crianças deficientes ali sorrindo. Uma fotografia difícil de mostrar a alguém, inclusive à “meia dúzia” de raros íntimos, um eco da própria coleção de amigos mortos, “a maioria”. Talvez a memória explique sua defesa da tristeza como guia do estado de espírito atual. Talvez a convivência diária com a ela evoque ainda seu mais estreito contato com a morte, três anos atrás, motivado por um câncer de bexiga quase exclusivo dos fumantes. Desembargador Lédio não fuma, mas às vezes a paixão pelos contrastes paradoxais parece esticar a perna, promovendo o tombo em vez da glória.

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O pessimismo é sem desesperança, porém:“a gente sempre faz questão de acreditar no mundo”. Quando gira a chave na fechadura de casa, geralmente após expediente no Tribunal, o peso diminui. Embora protagonize sua estréia em apartamentos, distante dos quintais e das paisagens da infância, a cobertura de dois andares no centro da cidade parece ser onde se sente mais à vontade, mais livre, mais pleno. Ali estão sua coleção de conchas, trazidas da Indonésia, de Filipinas e outros cantos, ali estão seus livros, inúmeros, espalhados, ali está a cuia de chimarrão, companhia constante, ali está a gata – que se chama apenas gata, numa outra alternativa, digamos, pouco usual. Lédio gosta de solidão, talvez porque o xadrez, as artes e a leitura demandem certo recolhimento, quase um resguardo – rituais, embora não religiosos. A solidão quase nunca é obstáculo. A felicidade, inclusive, não lhe parece dotada de qualquer definitivo. Ao contrário, compartilha com Freud uma prática e complexa definição: felicidade é superar os conflitos e vencer o mal-estar. Orgulha-se de certa definição sobre si mesmo, no prefácio do último livro lançado: “pessimista da realidade, otimista da idéias”.

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A presença do absoluto só serve para atrapalhar a humanidade. Para o desembargador, é necessário relativizar tudo, a começar pelas nossas próprias certezas. Nas questões técnicas, jurídicas, inclusive, a sugestão soa possível; no campo afetivo, é uma tormenta cotidiana – ainda assim, sente a sugestão como dever. Sua defesa para a erradicação do absoluto pode ser compreendida como uma elegia à diferença, um abraço sensato mas ainda pleno de contradições: “nas poucas vezes que me apaixonei, não parei para pensar um só minuto”. Na vida, então, tudo é debate, discussão. Preferindo paixão à calmaria, intensidade à freqüência, adota a gula como expectativa e sonho, remexendo o mal para compreender o bem, distanciando-se dos bons para diagnosticar as violências. Seu pior mal-estar, inclusive, o medo da morte, foi vencido num momento-limite, o limiar do câncer. Embora freudiano por opção, desembargador Lédio parece guardar dentro de si uma máxima de Nietzsche: dizer sim à vida.

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A maneira doce de falar, sempre entre sorrisos e simpatias, promove mais um contraste, agora com a fama de radical, pecha administrada pelo desembargador desde o ingresso na magistratura. Fica ainda mais difícil imaginá-lo bradando “verdades” com punhos cerrados e dedo em riste, reduzido em multidões partidárias, quando se observa a legitimidade de seu apreço pela arte. Prefere literatura à filosofia, “com convicção”, e passou 15 anos afastado da televisão aberta, alheamento às vezes negativo, capaz de distanciá-lo em milhares de milhas da sociedade – mais do que sua profissão permite. Em compensação, o apartamento atual comporta com alguns apertos cotas exorbitantes de literatura, música e livros de arte – se pudesse, empregaria todo o dinheiro em artes plásticas, sobretudo pintura. Como ainda não pode, investe em livros, e acumula centenas de títulos sobre artes plásticas, inclusive um original de arte russa do século XIX, apanhado após passeios virtuais na alta madrugada, luxo dos tempos modernos. Desembargador Lédio não fala uma palavra em russo, mas isso se torna apenas um detalhe diante da sua definição para a arte: “expressão da genialidade humana e sublimação de formas encontradas para fugir do sofrimento”. Talvez vislumbre nela a cura da tristeza; talvez esteja nela o segredo da viabilidade do mundo.

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Professor, magistrado, acadêmico, enxadrista. Político, talvez: acena a ânsia da diversidade, num novo vôo rasante. A recente alternativa, apenas esboço ainda, ensaio, ratifica a condição improvável do ingresso na magistratura. Da turma do fundão, Lédio era incapaz de conservar um caderno por mais de uma semana, rodava por falta, passava “arranhando” e dedicava todo o tempo à militância juvenil. Era candidato à prefeitura de Laguna quando contrariou todas as expectativas passando num concurso de magistratura. Recusando-se a dar as costas para a vida, e cansado das condições econômicas precárias, desfiliou-se (do PDT), e partiu para a judicatura. Fazendo valer o eterno retorno de Nietzsche, agora cogita o retorno aos palanques. Endurecido pela vida, sim, mas com a ternura típica dos alternativos.

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Um comentário:

  1. "Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive".
    R.R.(ou F.P.)

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