
* versão do autor
Obra do diretor norte-americano sugere três leituras distintas sobre as aventuras e as paranóias da civilização moderna
Com mais de 40 filmes no currículo, Woody Allen firma-se como uma das mais potentes assinaturas do cinema contemporâneo. Disputado por artistas de renome e com uma coleção de medalhas cults e sucessos de alcance popular, ancora sua poética no debate de dores e aspirações típicas da modernidade. Observada a partir da sua mais recente obra, Meia Noite em Paris (em cartaz nos cinemas do estado), a autoria do roteirista, diretor e ator norte-americano insinua a construção de três grandes palcos para a experiência humana.
O primeiro, presente ao longo de sua trajetória, enfatiza o caráter trágico de situações comuns à atualidade (ainda que desconfortáveis), impondo escolhas extremas e definitivas, que transformam a vida dos (anti-) heróis, expulsando-os da zona de conforto. É o caso de Crimes e Pecados (1989), que conta o drama do médico Judah Rosenthal, disposto a assassinar a amante para livrar sua reputação de interferências negativas. O mal-estar retorna em Match Point (2005), microcosmo do seu "cinema de dilema", no qual o protagonista Chris Wilton vive um pesadelo à Dostoiévski após se envolver com uma aspirante a atriz.
Quando se afasta do trágico, Allen ergue um outro universo, excêntrico agora, que remete à maneira libertária como o espanhol Pedro Almodóvar encara a realidade. Segue, então, o caminho inverso: abandona a tragificação do cotidiano, naturalizando as situações mais exóticas, simplificando descaminhos (aparentemente) chocantes, amplificando o mínimo detalhe que transforma desvio em imperativo. É este Woody Allen subversivo que aparece, por exemplo, em Vicky, Cristina, Barcelona (2008), palco de inusitadas escolhas sociais.
Em ambos os casos, desenvolve uma discussão ética: em última instância, o modo como adaptamos (ou não) nossas buscas e aspirações à sociedade. O que difere um universo do outro é a naturalidade com que suas personagens mais livres sobrevivem aos próprios dilemas e erros. E é justamente esse imperativo (trágico) da decisão que Woody Allen abandona em sua terceira abordagem, revivida em Meia Noite em Paris.
Focado no cômico latente da experiência humana, seu terceiro palco reúne personagens neuróticas e deslocadas, apaixonadas por remédios e fóbicas da vida, e conquistou a intimidade (e as gargalhadas) da plateia. É a maior fase da obra do autor, quantitativamente, rendendo comédias espirituosas que marcaram época, como Bananas (1971), Annie Hall (1977) e Desconstruindo Harry (1997).
Embora tenha fundamentado a carreira do diretor ao longo dos anos, comediante desde os primeiros passos, a ênfase no cômico já não parece capaz de acrescentar grandes feitos à sua obra. Contando a história de um romancista inédito que sonha em viver na década de 20, cenário dos seus ídolos Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Cole Porter, Woody Allen retoma a abordagem superficial, os clichês previsíveis e as lições de moral (cada vez mais explícitas) de dois dos seus filmes mais insossos, Scoop (2006) e O Escorpião de Jade (2001). Repleto de referências, rasas para os conhecedores e obscuras para os desavisados, Meia Noite em Paris constrói uma década de 1920 caricata, com pinceladas apressadas que muitas vezes apenas ratificam certa mitologia, bastante desgastada, sobre os heróis da década perdida.
Jade Gandra Dutra Martins é professora convidada do curso de cinema da UFSC
(texto publicado originalmente no DC Cultura, 25/06/2011)
(texto publicado originalmente no DC Cultura, 25/06/2011)