terça-feira, 7 de abril de 2009

Experiência Zero

Durante toda a faculdade, alimentei algumas convicções sobre a minha profissão. A principal delas é que só abraçaria o ofício à moda antiga. De fato, todas as minhas inclinações tendiam ao jornalismo de ontem: textos longos, paixão por diagramação, desconfiança da Internet, absoluto fascínio pelo papel. Nunca cogitei televisão, jamais sonhei com assessoria, desconhecia por completo o universo do rádio - e sigo assim até hoje. Eu só não sabia ainda dos perfis.

Descobri minha verdadeira paixão jornalística por acaso, enquanto trabalhava no projeto editorial de uma revista que, infelizmente, definhou sem conhecer a luz. EOQE era o nome, e tinha um projeto gráfico respeitável. Eu coordenava os textos, e escrevia sobre o tema que bem entendesse, qualquer um MESMO, contanto que não fosse muito extenso, já que o formato era pocket. Optei pela parte das entrevistas - ping-pong ou texto corrido, tanto fazia.

Alguns dias depois, fui conversar com o Alejandro Ahmed, que acumulava prêmios pela última coreografia do Cena 11, sem nenhuma pretensão de homenagear Talese. Mas quando sentei na frente do computador, após uma conversa divertida de mais de duas horas, descobri que aquela coisa de que eu gostava tanto, e tentava a todo custo arrancar de dentro de mim, mesmo após os encontros mais desinteressantes, chamava-se perfil literário. Ali, decidi que assim seria. E assim será.* Abaixo, o resultado da minha mais legítima epifania profissional.

* O que fazer com essa descoberta rende um post à parte...



Onze atos

A freqüência com que Sphex deixa sua casa para trabalhar vem aumentando muito nos últimos meses. Do pequeno prédio de inspiração modernista debruçado sobre a orla de Coqueiros, parte sempre à noite com a mochila carregada de equipamentos: mixer, fones de ouvido, toca-discos, cabos, cases e set lists de canções novinhas em folha. Suas especialidades, o minimal tecno e o minimal electro, embalam as madrugadas modernas de gente que insiste em amadurecer o underground mesmo numa ilha famosa pelo boi-de-mamão e o pirão d’água. DJ dos mais conhecidos em Santa Catarina, Sphex ainda arranjou outro jeito de arrancar o sono de seu público: “Será que algum dia ele deixa de dançar?”, perguntam-se uns e outros, entre drinques e barulhinhos.

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Sphex nem sempre foi o codinome de Alejandro. Há algum tempo, coisa de cinco anos, ele era apenas Alejandro Ahmed, bailarino na infância, coreógrafo desde a juventude, diretor artístico da companhia Cena 11 há 15 anos, famoso freqüentador de baladas alternativas em seus (raros) momentos longe da rotina da dança. Um cara que pisou o palco pela primeira vez aos treze anos, e desde então acumula prêmios sem precisar de nenhum malabarismo: os dois últimos foram no fim do ano passado, o Bravo! Prime de Cultura, por melhor espetáculo, e o Sérgio Motta Arte e Tecnologia, ambos para Pequenas frestas de ficção sobre realidade insistente. No palco, já é autor de grandes feitos: elaborou coreografias premiadas, ouviu elogios rasgados, conheceu críticas negativas, dançou com alguns de seus ídolos, polemizou com a própria nudez. Em quinze anos de trabalho, um norte prevaleceu, a “procura de honestidade”. Vem deste lema o seu maior orgulho: “a maneira como a companhia se organizou, sem concessão artística de qualquer espécie, e com certo grau de estabilidade”.


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Estabilidade, para Alejandro, é manter o mesmo objetivo, a honestidade, num percurso contínuo. Rima com equilíbrio, não com eternidade. Autor de oito espetáculos para o grupo, diretor de onze bailarinos, “chefe” de dezoito funcionários, parar de dançar já parece algo natural. Não pela barreira do corpo, já que o grupo prioriza técnicas menos espartanas, mas pelo próprio processo da maturidade: “vai chegar uma hora em que vou desejar usar a informação para outra coisa”. Seu futuro, acredita, é se tornar unicamente coreógrafo, arranjando e desconstruindo passos alheios. Enquanto não deixa a cena do palco, pesquisa e estuda e discursa sobre seus pontos favoritos em dança: o trato com o corpo, a espetacularização das coisas, as possibilidades de construção de um espetáculo de forma honesta. A compreensão dessas questões parece atender a um desejo mais que profissional em Alejandro: para ele, “a arte é uma estratégia de sobrevivência da espécie humana para compreender melhor a realidade”. Sem ela, sobraria apenas desespero.


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Uma das maiores lições de vida, ele recebeu no fim de 2005. A bailarina do Cena 11 Gica Alioto morreu de câncer aos trinta e dois anos de idade. A tristeza pelo imprevisto colocou-o diante de uma antiga pergunta, a dúvida que todos manejam nos momentos escuros: “O que eu faço enquanto estou vivo?”. Se a suposta resposta parece fácil, dança, a resposta que vem é menos profissional e mais aberta. Alguns fatos da vida afastaram Alejandro do espírito workaholic. Seu prazer é o prazer do cotidiano, das coisas miúdas e simples, de buscas outras e variadas. Dorme tarde, e pouco, aprecia doces e carne vermelha, sonha com um boteco próprio, gosta de comprar roupas e sapatos, prefere açúcar a adoçante, teme doenças e falta de grana, baixa música na Internet, detesta uva passa e beterraba, reza de vez em quando, fuma um cigarrinho e outro – embora tenha parado, com certo custo, há três verões, depois de treze anos de hábito. Não conta piada, mas relaxa fácil, garante. Bastam uns drinques e uma noitada agradável entre amigos. Mesmo encontrando razões para a vida fora do universo do palco, quase todos os seus amigos, coisa de “90%”, dialogam com suas duas paixões profissionais: ou são músicos ou são bailarinas. Por isso, garante, “tá sempre ligado”.

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Não vive sem café, sexo e álcool, principalmente se do lado de lá do balcão vier uma boa tequila. Política também lhe parece assunto sério, conceito em que consegue encaixar ele mesmo e o grupo: “não tem como não acreditar, a gente está inserido nela”. Já é cada vez mais possível viver de dança no Brasil, quase uma realidade, ainda que faltem uns tantos contornos até a construção de algo além da utopia. Familiarizado com as leis de incentivo, e patrocínios de toda ordem, assinala que “ainda não foi criada uma política cultural séria no país, o que não exclui grupos e bailarinos deste processo”. Suas referências em dança quase sempre rompem a barreira estética para se misturar à ética. Não à toa, perceber precariedades e definir o que dota ou não o homem de poder são algumas das buscas mais insistentes do bailarino, assaltando seus pensamentos até mesmo quando está diante daquelas três paixões inapeláveis.

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Alejandro implica com a própria mania de querer sempre todas as coisas, ao mesmo tempo: músicas, roupas, livros, equipamentos, referências, paisagens. Atualmente, tenta administrar seu tempo com três atividades principais: dança, que treina e ensaia seis horas por dia; pesquisas sobre corpo e movimento, que fundamentam suas coreografias e seu olhar exclusivo sobre a arte; e música, quase toda buscada na Internet. A ânsia, porém, só acentua sua “tensão sob controle”, estado de espírito do momento: entre um e outro intervalo, lê poesia, sobretudo a de Augusto dos Anjos e Arnaldo Antunes, curte quadrinhos, seu herói é Wolverine, e ainda incursiona pelo universo dos videogames, passatempo antigo que influenciou Violência, espetáculo da companhia em 2004.


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O problema começa a se delimitar quando a vocação para o abraço irrestrito alcança seus relacionamentos pessoais, sobretudo seus namoros. Parece difícil encontrar alguém disposto a avaliar antigos paradigmas: “todo formato precisa ser pensado do lado de dentro, e é uma pena que a maioria das nossas coisas tenha que se encaixar em padrões já existentes”. Ainda assim, o currículo sugere certa inclinação aos namoros longos, quase sempre com bailarinas. Embora a curiosidade torne a fidelidade uma busca difícil, a definição de uma boa união ainda conserva ecos românticos, como seu ideal de felicidade, que pede sobretudo paz e amor. Se as normas antigas já soam gastas, ainda é possível acreditar “num relacionamento que expanda a capacidade dos dois de viver bem no mundo”. Quem aceitar a causa, com a mesma energia com que Alejandro costuma agarrar tudo, tem vaga já num outro projeto, tão urgente quanto seus desejos imediatos: um filho, e no máximo em quatro anos.

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Há algum tempo está solteiro de novo. No apartamento modernista, construído em 1963 para ser um hotel, vivem apenas ele e a cachorra, Nina, outro exemplo de sua busca constante pela totalidade. Integrante do espetáculo Skinner Box, encenado pela companhia em 2005, a cachorrinha adestrada era apenas mais um participante temporário do Cena 11. Às suspeitas de estresse e maus tratos do antigo dono, Alejandro respondeu com impulso, levando-a para dividir com ele sua vista da praia da Saudade. Agora, tenta administrar as conseqüências: com quem deixá-la quando viaja?

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Morando sozinho desde o estabelecimento profissional da companhia, Alejandro não se mostra muito à vontade com os afazeres domésticos. Quase nunca cozinha e detesta lavar a louça, muitas vezes acumulada alguns dias sobre a pia. O que menos suporta, porém, é arrumar a mala, justamente uma das atividades mais corriqueiras de sua vida entre turnês e estréias. Quando vai a Berlim, cidade em que gostaria de viver caso precisasse abandonar o país, e onde já esteve quatro vezes, a primeira a convite de uma famosa companhia local, passa horas lutando para encaixar as peças fundamentais que se amontoam: parece-lhe impossível a receita dos práticos, para quem bastam três camisas, duas calças e um sapato. Alejandro teima em querer tudo ao mesmo tempo, e tudo ao mesmo tempo geralmente não cabe em nenhuma mala.

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Parte da dificuldade com a mala provém de sua paixão pela moda, em especial a alternativa e de bom design. Quem já o viu nas ruas sabe que a aparência parece ser uma de suas coreografias mais criativas. O cabelo já foi comprido, raspado e curto, pintado com quase uma dezena de cores: azul, verde, descolorido, laranja, vermelho, cinza... Juntamente com música, sobretudo vinil, roupa é o item que mais compra. Para sentir-se bem com o que veste, preocupa-se, sim, com o corpo, mas sem a neurose típica dos bailarinos e das modelos. Evita bebidas fermentadas, mas não as noitadas. Dorme seis horas em dias de semana, mas apenas quatro quando enfrenta a madrugada. Foge do cigarro, mas se está saindo com alguma garota que fuma, quem sabe? Para contrabalançar, pratica musculação, em média três vezes por semana, e dança, dança muito, dança sempre.

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Não é só a juventude dos seus trinta e seis anos que confirma o modo como Alejandro leva a vida. Suas nove tatuagens também gritam algumas verdades. Da primeira, uma pequena rosa negra nas costas, até a mais recente, variados estilos convivem numa harmonia paradoxal típica do bailarino: beleza e agressão, filosofia e cotidiano, elegância com rasgos. Há três anos, mais ou menos, uma frase certeira passou a ocupar seu braço esquerdo recordando no dia-a-dia a promessa de libertação de toda arte de respeito, seja a do Sphex, seja a de Alejandro: “Ainda há caos dentro de vós”. Ainda, não, para sempre.

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Um comentário:

  1. Olá Jade. Esse perfil foi publicado num jornal da FCC, estou certo? Enfim, ficou demais.

    Sds.
    Felipe Rosa

    P.S.: Sou contemporâneo do Lenhart nos tempos de Pedra Branca.

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