quinta-feira, 14 de maio de 2009

Perfis literários - Parte 3

Mais um, da série idealizada para o jornal O Judiciário, da Associação dos Magistrados Catarinenses. Deu um trabalhão, sobretudo pela insistência em realizá-lo na forma de verbetes, mas é um dos que mais gosto.


Pequenas lições de filosofia e equilíbrio

Salim Schead dos Santos já foi estudante de línguas, historiador formado, jornalista de pautas quentes, poeta premiado, juiz dedicado às causas sociais e professor universitário. Perambulou por incontáveis cidades, perseguiu objetivos de carro, ônibus, trem e avião, decidiu a vida de todo tipo de gente, julgando dos casos mais polêmicos aos enroscos mais triviais. Desembargador desde 2003, dedica-se agora a manter o equilíbrio mesmo num dos picos do poder. Um desafio fácil de vencer: desde os dias mais incertos da juventude, é acompanhado por uma ilustre figura, competente na construção de sua personalidade tranqüila, observadora e auto-consciente. O filósofo romano Marco Aurélio deu-lhe as mãos ainda na adolescência, quando conheceu o livro Meditações, até hoje em sua mesinha de cabeceira. A obra, baluarte da filosofia estóica, consolou o magistrado nos raros momentos de sofrimento, encarados sempre como experiências, e permitiu que reconhecesse mesmo as felicidades mais miúdas, tão difíceis de identificar. A convivência diária rendeu ao desembargador um rol particular de sabedorias, orientadas segundo o despojamento da doutrina ascética do romano, dispostas aqui em ordem alfabética, segundo princípios sugeridos e cultivados pelo filósofo. A seguir, algumas das lições mais preciosas de Salim Schead dos Santos.


ARTE – Se Marco Aurélio aprendeu com Rústico o valor de leituras rigorosas, dispensando idéias gerais e palavras fáceis, seus próprios escritos sugeriram a importância da pluralidade estética. Comprador compulsivo de livros, o desembargador desvia boa parte do orçamento à aquisição dos preferidos: Drummond, Borges, Machado, Vargas Llosa, Flaubert, Balzac, Quintana, Bandeira, Rubem Braga. Gosta de crônica, poesia, romance, livros de ensaios – Carlos Fuentes é a companhia do momento. Ao elencar as maiores obras, confirma o gosto diverso: A morte de Ivan Ilitch, Ratos e Homens, Vidas Secas, José Saramago – de quem leu mais de uma dezena de títulos. Embora não dedique muito tempo à música, quase sempre aciona o som durante as análises de processos, às vezes música orquestrada, às vezes canções em língua inglesa. A cultura artística é complementada com visitas a museus, sobretudo em viagens ao exterior, área onde também já acumula eleitos: Portinari, Di Cavalcanti e Van Gogh, cuja biografia o impressiona, sobretudo pelo fracasso de não ter conseguido vender uma única tela em vida. É por meio da literatura, porém, que intensifica com mais paixão sua educação estética: “para mim, as leituras fora da área técnica são também formas de descansos”. Acumulando vários títulos ao mesmo tempo, Salim completa ao menos um livro por mês, já que “cada um satisfaz um tipo de curiosidade”.

CONSCIÊNCIA – O ofício da magistratura parece depender de quatro condições: vocação para a responsabilidade, busca de conhecimento fora das análises técnicas, compreensão humana e capacidade para resolver conflitos. Em uma palavra, consciência, consciência dos atos, na totalidade, e não apenas no restrito âmbito em que muitos mantêm suas ocupações profissionais. Da mesma forma que é proibitivo "julgar sem se preocupar com as conseqüências da decisão", é necessário “jamais impor seu ponto de vista sem se cercar de informações, tampouco agir por impulso”. Parte do genuíno interesse pelo outro Salim atribui à sua geração, construída a partir de passeatas de protesto, recusa à ditadura, palavras de ordem, poemas de Chico Buarque e peças de teatro interditadas. Os anos 60, garante, formaram uma personalidade calcada na responsabilidade social, e na busca do bem comum, um olhar ao mesmo tempo contemplativo e participante. Tal consciência, prerrogativa particular do seu conceito de verdade, estende-se à vida pessoal, num movimento circular. Com a fala mansa, escolhendo bem as palavras, explica que adoraria ter mais tempo para se voltar para dentro de si, primeiro degrau da felicidade, segundo sua lógica: “Eu gosto muito de entender as pessoas”. Neste universo, o bem-estar é parente do auto-conhecimento: ter consciência de si próprio, sua introversão, sua calma, sua tranqüilidade, é o princípio de uma jornada solitária que pode ajudar a modificar o próprio mundo. Um olhar para si caro também ao companheiro Marco Aurélio, que cresceu ao som das palavras do tutor: não recear o trabalho, tratar das suas próprias necessidades, meter-se com a sua vida, e nunca dar ouvidos à má-língua.

FAMÍLIA – Em 2008, completou 34 anos de casamento. Sônia, paixão permanente, faz questão de frisar, era uma estudante de línguas quando se conheceram, na Universidade Federal de Santa Catarina. O encontro transformou sua vida e lhe entregou duas meninas, Juliana e Fernanda, e um neto, Samuel, garotinho de quatro anos que rouba parcela significativa de sua atenção. O casal vive ainda com três cadelas, Keli, da “terceira idade”, Kate, “adolescente”, e Phoebe, “ainda criança”, e dois canarinhos; todos juntos numa casa no Santa Mônica, um dos poucos bairros catarinenses que ainda preservam o clima interiorano. A família tranqüila de hoje lembra bastante aquela de onde veio, ele e mais seis irmãos, um deles falecido aos 24 anos. Lá, conheceu as diferenças, aceitando tanto a extroversão da mãe, sempre alegre e otimista, quanto a introversão do pai, mais recolhido. Se Marco Aurélio inicia suas meditações louvando o legado familiar, nossas heranças subjetivas, Salim compartilha com o amigo a mesma gratidão. Com a mãe, reconheceu a validade da máxima “querer é poder”, afastando a crença na sorte, esforçando-se para dar conta da vida. Anos depois, ainda recita Rui Barbosa, eternizando o diálogo materno: “Maior do que a tristeza de não haver vencido é a vergonha de não ter lutado”. Em casa, o menino de Criciúma vislumbrou ainda aquela esperança meio gratuita que surge quando o mundo parece desbotar, certa crença na superação: a irmã Ângela venceu o câncer sem tirar o sorriso do rosto. Ali encontrou também o primeiro herói, imbatível até hoje: seu próprio pai, "sereno, honesto, sério, sempre em busca do diálogo, dono de excelente compreensão humana". Sônia, anos depois, entregou-lhe o mesmo aconchego: com ela aprendeu inglês, com ela conheceu a fé, por ela deixa-se transformar cotidianamente.

MORTE – Para o desembargador, “a vida é um caminho” – ponto alto de toda filosofia que tende a enxergar no universo pólos de constantes mutações, objetivo já das meditações milenares de Marco Aurélio. Em paz com suas escolhas, e crente da validade da própria trajetória, sem desalinhos ou excessos, considera muito bom seu atual estado de espírito: “tenho duas filhas queridas, amo minha mulher, possuo grandes experiências conjuntas e gosto do meu trabalho”. É pela satisfação, então, que "não encontra dificuldade para encarar a idéia da morte". Se a sociedade moderna faz questão de esconder nossas despedidas, enclausurando os casos de doenças fatais, vedando o corpo em caixões de luxo, o magistrado encara a finitude como parte do próprio fenômeno vida. Se pudesse sugerir sua ida pediria apenas que fosse, claro, com tranqüilidade – tranqüilidade apresentada por ele diante dos revezes e das felicidades. Mais uma importante lição do mestre: “Embarca-se, faz-se a viagem, chega-se ao porto: desembarca-se, então”.

PRESENTE – Viver cada dia como se fosse o último é uma das mais contundentes sugestões da filosofia estóica: “lembra-te que o homem vive só no presente, neste momento fugaz: todo o resto da vida é ou passado e já ido, ou ainda não revelado”. O posicionamento no presente, dispensando as sobras do passado e evitando planejamentos maiores para o futuro, garante dose extra de tranqüilidade ao magistrado, tão importante para a efetivação da sua experiência. Para fazer valer a eternidade do instante do momento, evita o rancor: "muitas decepções que tive, já esqueci, não vale a pena retê-las". Mas não deixa morrer a alegria: "Passar no concurso para juiz foi uma explosão de alegria". No fim das contas, tempera com intensidade, a intensidade do hoje, sua tão característica tranqüilidade. É a própria experiência da vida que defende, com unhas e dentes: “Não vejo mérito na omissão, nem naqueles tipos que passam a vida em brancas nuvens”.

RELATIVISMO – Nem o prazer é necessariamente um bem, nem a dor é necessariamente um mal – a sentença, uma das máximas sugeridas nas entrelinhas de Meditações, é seguida à risca pelo discípulo. Seu relativismo, que busca dar conta das situações de acordo com seus contextos próprios, aplica-se em primeira instância à profissão. Antes de tudo é preciso enxergar a lei de outra forma, buscando alternativas, não apenas seguindo dogmáticas pré-estabelecidas. Uma de suas grandes preocupações em relação ao mundo contemporâneo é justamente a proliferação dos radicais, peritos em abandonar o fator humano. Contra a dicotomização da realidade, vislumbra no excesso de rigor apenas o caminho mais fácil para solucionar problemas de muitas pontas: “não acredito em mocinho e bandido; todo o ser humano tem virtudes e defeitos”. Ele, claro, lança o olhar para as virtudes. Herói, assim, pode ser todo mundo, graças a deus: basta resistir, basta revelar equilíbrio em situações-limite. “Heróis não precisam ser autores de ações grandiosas”. Ele mesmo encara-se como um magistrado atento e inquieto, atento às transformações da sociedade, cada vez mais velozes, inquieto com certas leis, “afinal nossa legislação não dá efetividade aos direitos da saúde e do meio ambiente, por exemplo”. Por conta da maneira filosófica com que encara a atividade da magistratura, cultiva algumas desconfianças cuidadosas: “tenho bastante dificuldade para aceitar a prisão por dívida”. Foi por se preocupar tanto com a liberdade, os direitos daquele outro, seu interesse profissional maior, que acabou se envolvendo academicamente com Direito Penal, tema do seu mestrado, também na UFSC. “É uma área desafiante. Fico muito preocupado quando leio que 43% acredita que bandido bom é bandido morto”.

SIMPLICIDADE – Pessoalmente, Salim é um homem cordial e atencioso, sem qualquer vestígio da arrogância que acompanha alguns nomes do poder. Conversa sem pressa, e ouve com a mesma atenção com que explica suas verdades – quase sempre relativizadas de acordo com o contexto e o ouvinte. Pergunta, indaga, escuta: parece aprender ao menos um tantinho com qualquer fato da vida, inclusive os mais corriqueiros. Interessa-se, sempre, pelo outro, dando-lhe crédito em qualquer circunstância. Cultiva a simplicidade dos verdadeiros humildes, desconfia do poder como de fato desconfiaram os legítimos heróis. Luxo, facilidades, dinheiro, vaidade, sucesso – os duvidosos valores contemporâneos parecem não afetar em nada suas escolhas. Dispensa saídas noturnas, aceita a própria introspecção, tranca-se entre clássicos diversos e inúmeras publicações, aproveita a família nas horas vagas. Adora mesmo é viajar: “nunca estou cansando para colocar o pé na estrada”. Se pudesse modificar alguma coisa em si mesmo, seria um tantinho mais extrovertido. Se recebesse a chance de dobrar algum sentimento no mundo, multiplicaria a compreensão e a tolerância – aquele olhar para o outro, que nele aparece e se consolida de forma tão natural. Solidariedade aqui é palavra chave. Nesta tranqüilidade ativa, mais próxima de um olhar tolerante para as coisas do mundo e dos homens, jamais um refúgio dos resignados, como poderia parecer aos fracos, alimenta a alegria e dispensa as decepções. Depende de cada pessoa transformar angústia em alívio: “muitas vezes o tempo passa e você compreende a situação, daí já deixa de ser decepção”. Para o desembargador, o mundo gira, as filas andam, os imperativos modificam-se: “Na medida que a vida vai passando, a gente vai enxergando as coisas de maneira diferente”. Para os sábios, só vale protagonizar a cena quando se é sereno, simples; “não vergues, mas sê comedido”.

TRANQUILIDADE – Na opinião do desembargador, "felicidade é um estado de espírito onde você se sente tranqüilo, em paz com o mundo e com você mesmo". Não à toa, fora o pai, seu ídolos são dois inconfundíveis baluartes do pacifismo, Madre Tereza de Calcutá e Gandhi. A aceitação de si mesmo é fato que acompanha o desembargador desde a infância: sempre foi estudioso, mas nunca fez questão de ser eleito o primeiro da turma; conviveu com parcela significativa de extrovertidos, mas aprendeu a se compreender como um homem calado, quieto, caseiro, que tira mais prazer do recolhimento da leitura do que das festas encerradas apenas com o dia claro; cordato, calmo, flexível. "Sou mais bombeiro do que incendiário" – define. A atividade favorita reflete a aceitação do seu próprio sujeito, aquele si tão importante na construção da felicidade: be yourself. Resignado diante do fluxo da vida, aceita de bom grado até mesmo a velhice, fonte de pesadelos dos modernos. Sua meta é envelhecer tranquilamente, sem ressentimentos. Se a virtude está no meio termo, como preza a filosofia de Marco Aurélio, desembargador Salim está a poucos passos do paraíso.

VERDADE – Desde pequenino, apresentou inclinação à área das ciências humanas, descartando números e estatísticas. Sempre lhe inquietou a condição humana, bem como a maneira como se comporta cada indivíduo em seus momentos particulares de tensão. A verdade, como meta, objetivo, esteve presente desde que aprendeu a pensar, seja na biblioteca ao alcance das mãos, repleta de obras capazes de discutir a fundo os desejos humanos, seja nos primeiros passos profissionais, como o estudante de História que desejava desvendar o passado, ou como o jornalista em busca do retrato mais fiel da notícia. Encarar a profissão com os contornos vagos do imprevisível é outra característica do desembargador: "Direito é sempre um desafio". Formado em História, a magistratura invadiu sua vida como uma espécie de chamado, um projeto novo onde conseguiria colocar em prática noções próprias de justiça. Já em sua primeira comarca, de Camperê, no extremo oeste catarinense, recebeu a chance de exercitar sua maneira particular de buscar a verdade. Num processo sobre posse de terras, contrariou expectativas ao colocar frente a frente as 80 famílias invasoras e o proprietário, que pedia reintegração. O encontro, recurso utilizado com extrema parcimônia, foi produtivo para todos os envolvidos, revelando ao autor, já naquela estréia tumultuada, a importância de se trilhar o próprio caminho, ainda que muitas vezes nossas escolhas não sejam as mais ortodoxas. "Se você tiver essa preocupação com o outro, vai ser juiz". A trajetória até o posto de desembargador foi, sem dúvida, uma construção, edifício em que depositou tijolos ao decorrer de toda a vida, afinal ela é, como já sabemos, “um caminho”. No topo, reconhece a necessidade de responsabilidade – quanto mais, melhor. Ao contrário dos amantes da força, o poder o incomoda em demasia; considera-o uma missão, jamais uma benção. Conseguir identificar a decisão correta, a verdade jurídica, é uma preocupação constante, assalto na tranqüilidade tão perseguida pelo desembargador. Hoje, considera-se um profissional "preocupado com o ofício de fazer justiça". Afinal, como lhe sussurra Marco Aurélio todas as noites, a vida mortal nada pode oferecer de melhor do que justiça e verdade, autodomínio e coragem. E ele aprendeu bem a lição.

Um comentário:

  1. Esse não tinha lido. Muito bem escrito, como sempre! Excelente a idéia de fazer o perfil em forma de doutrinas. Parabéns!
    Beijinhos

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