Manoel Carlos, o atual chefão das nove, parece remar na contramão dos indelicados costumes contemporâneos. Enquanto o mundo é assaltado por barulhentos moralistas (sobretudo falsos moralistas), o velhinho recorre a certa visão bastante particular dos relacionamentos para contrariar a nova (velha) ordem vigente. Viver a vida já pode ser considerada a teleficção mais cool até hoje: não há mocinhos nem vilões, não há certo e errado, não há falatório sobre contingências, não há escolhas fáceis nem sentenças obrigatórias.
Vive-se, "apenas".
Helena, a protagonista, decide se casar após um mês de namoro com o galinhão da história. Vinte anos mais velho, recém separado e pai de três filhas, Marcos abraça a missão "horário integral", mas não abandona os freelas. Para complicar ainda mais o envolvimento instantâneo com um homem sequer divorciado no papel, Helena carrega o fardo de ter escolhido um aborto no passado, remédio para uma gravidez imprevista, a fim de se firmar na profissão.
Friso: Helena não fez um aborto por falta de condições para criar o filho, recurso comum aos enredos lacrimejantes, típicos do gênero melodramático, estilo ficcional da modernidade. A mocinha abortou, sim, mas por amor ao trabalho e à sua opção de mulher sem filhos.
Para completar o rol das experiências inusitadas, logo após a lua de mel conhece Bruno, um fotógrafo da sua idade, por quem se sente irrestivelmente atraída. É correspondida. Com poucos meses de casada, beija o amigo num deslize nada calculado. Sente-se mal, jamais culpada.
No núcleo "cômico", Betina está prestes a completar bodas de porcelana com um galanteador que não dispensa a faxineira da própria casa. Juntos, tiveram uma filha adolescente. Embora sempre envolvido em noitadas e bebedeiras, Gustavo, o marido, parece nunca tê-la traído efetivamente. A "correção", porém, embora exista de fato, é relativizada pelo motivo: falta de oportunidade.
Um belo dia, sem qualquer aviso prévio, Betina apaixona-se por Carlos na esteira da academia. É correspondida. O susto toma conta, ela desabafa com a amiga. Ingrid divide choros e ranger de dentes, Betina não desiste. Atualmente sua vida se resume às peripécias para efetivar sua paixão sem ser descoberta. O casal extra-conjugal recebeu até música romântica na trilha.
Luciana, aspirante a top tetraplégica após acidente de ônibus, beija o irmão na boca bem no comecinho da trama. Eles não se sabem irmãos. Ela era noiva de Jorge na época. Detalhe: o descompasso ocorre com Bruno, futura paixão recolhida de sua madrasta Helena. O beijo deslocado jamais martirizou a modelo. E Manoel Carlos nunca voltou ao assunto, construindo um silêncio que naturaliza com ainda mais competência os tropeços do seu viver a vida.
"Acontece"- sugere a trama.
Miguel era para ser o gêmeo "malvado": aprontão, debochado, um tantinho indisciplinado, há anos luta para concluir a faculdade. Jorge, o certinho, recusa o dinheiro do pai para vencer às próprias custas no escritório de arquitetura. Valoriza o esforço, o terno e os modos corretos da cartilha. Namora a modelo Luciana desde a adolescência. Miguel apaixona-se pela namorada do irmão. Luciana apaixona-se por Miguel. O constrangimento é geral. Ainda assim, a ausência de moralismo é enfatizada com tanta segurança que o Brasil inteiro torce pelo casal torto.
Sem dúvida é a primeira vez que uma novela das nove aborda temas tão espinhosos sem moralismos e pré-julgamentos. As atitudes controvertidas das personagens, sobretudo das mulheres, não geram fofocas, salvo em raríssimas ocasiões, nem disse-me-disse, nem culpas abissais, nem castigos da providência. Os "erros" simplesmente não são assunto, nem fazem história - a não ser dentre os núcleos cruéis da novela, ávidos pelas fogueiras alheias. Ninguém padece de dor, ninguém torce por escândalos. A civilidade toma conta das confusões, impulsionada por certa maturidade que parece sussurrar o óbvio antes inédito na grade de programação: nem sempre a vida segue da maneira planejada, nem sempre os sonhos se concretizam, nem sempre se consegue completar o caminho sem virar a curva. Algumas situações exigem curvas. Dos mais absurdos desacertos entre irmãos às histórias de amor mais atropeladas, tudo aqui é tratado com uma naturalidade silenciosa e consoladora. A naturalidade de quem sabe que pouco se escolhe, no fim das contas. Algumas coisas simplesmente acontecem.
Ainda há alguma luz no fim do túnel.
E quem acende os faróis é um senhor de 76 anos.
PS: Texto escrito há semanas, apenas à espera de ganchos.
PPS: A capa do Hora de Santa Catarina, no último sábado, pergunta "Viver é trair?". Não, certamente que não. Mas "viver", esclarece Maneco, está longe de se limitar a bons mocismos.
PPPS: O segundo gancho é um textaço bom demais, do editorialista Rafael Cariello, publicado na Folha de São Paulo do último domingo. O título é "Moralismo migra das novelas para telejornais".
sempre achei que era "madrasta"...
ResponderExcluirjá corrigi.
ResponderExcluirobrigada,
bem legal!
ResponderExcluiro maneco ia gostar de ler!
só toma cuidado com teu irmão, pra ele não postar nada no blog da luciana... haha
bjo!
Mainha! O Diego F., malvado, defende que não há mérito nenhum no silêncio do Maneco sobre o beijo da Luciana. Pro Diego, ele não voltou ao assunto porque, "completamente senil", esquece de desenvolver a história. risos.
ResponderExcluirQue horror essa manchete do jornal. É inacreditável como até jornalistas trabalham em função dos conceitos de certo e errado - ou é ingenuidade do repórter ou, pior, estão subestimando a capacidade dos leitores de entender a falibilidade da condição humana.
ResponderExcluirHorror, mesmo. HORROR. Tenho vergonha de presenciar essas coisas, em pleno 2010.
ResponderExcluirnoveleira
ResponderExcluirLindo texto,como vc é inteligente né?Impressionante,salve salve Jade a rara pedra da ilha.
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