quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O sonho acabou *

Obra-prima do norte-americano F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby chega ao mercado em nova tradução e reabre interesse na obra do autor

Scott Fitzgerald saboreava o auge do seu próprio american dream quando entregou ao mundo a história do ambíguo milionário Jay Gatsby. Contista renomado e já autor de dois romances que venderam mais de 60 mil exemplares, número espantoso para a época, desenvolveu uma poética ambivalente como a trajetória dos heróis da década perdida. Na contracorrente de seus contemporâneos, conseguiu estabelecer um projeto de ficção que mesclava, paradoxalmente, temática atenta ao zeitgest borbulhante dos anos 1920 e desprezo pelas modas literárias de então, com investimento autêntico no romantismo do estilo e do olhar.

Relançado com nova tradução, O Grande Gatsby (Companhia das Letras, trad. Vanessa Barbara, 256 páginas) pode ser considerado o ápice da carreira do escritor de Minnesota. O romance, de 1925, reconstrói uma experiência social típica do período, a busca desesperada e encantadora por um lugar ao sol na nação das promessas, ao mesmo tempo que se firma como o ponto alto da literatura do autor. O drama de Jay Gatsby condensa os principais traços da assinatura de Fitzgerald, esboçada desde sua atuação como contista em revistas como Esquire e Vanity Fair: a tematização do sonho americano, vivido sempre à revelia do bom senso; o estilo afetado, último suspiro da prosa romântica; a ética trágica, que dota as personagens de intenso poder de autoaniquilação, aprofundando ainda mais o enredo.

A existência cintilante de Jay Gatsby, um self-made man, chega até o leitor através do seu vizinho, o narrador Nick Carraway, simplório corretor de títulos. Sua fortuna, supostamente originária do tráfico de bebidas durante a lei seca, é vítima de fofocas por todo o país. Gatsby, porém, não se importa. A escalada social ilícita permitiu-lhe usufruir de uma realidade que parecia vetada quando ainda se chamava (apenas) James Gatz. E é graças a ela que organiza suas festas na mansão, por onde desfilam os hits do momento, como os cabelos à la garçon, o jazz dançante e o sexo relativamente livre, protagonizados por heróis que enriqueceram tão subitamente quanto despencarão na miséria (com a crise da bolsa de valores, em 1929).

Atento ao espírito do seu tempo, Scott Fitzgerald oferece ao leitor a sua própria versão de um mundo dilacerado entre esperança econômica e fracasso pessoal, construindo uma geração faminta, que consome (a vida) até a última gota. Assim era Amory Blane, o protagonista endinheirado de Este Lado do Paraíso, de 1920, em busca da sua fatia da terra prometida. A mesma existência regada a álcool e investimentos ousados foi compartilhada pelo herdeiro Anthony Patch e sua bela Gloria, em Belos e Malditos, de 1922. O projeto é consolidado em O Grande Gatsby, onde o autor desnuda uma constelação de mulheres fúteis e executivos sem função, rasgando notas e brindando até o amanhecer na mansão de origem duvidosa.

Enquanto oferece uma versão adorável e consistente daquela geração, Fitzgerald afasta-se do presente ao apostar em um estilo afetado, marcado por frases longas, referências pop e adjetivos cheios de pompa. Rival de Ernest Hemingway, com quem dividia polêmicas literárias, desenvolveu, propositadamente, uma prosa bastante diversa da poética do premiado autor de O Velho e o Mar, caracterizada pela economia de adjetivos e descrições. Desde seus primeiros contos, publicados quando ainda estava na casa dos vinte, Fitzgerald reivindicou o epíteto de último expoente romântico, apelando tanto para a escrita poética quanto para o relato de histórias de amor quase sempre impossíveis e insuperáveis.

Submersos em uma combinação de desamparo e desatino, os casais de Belos e Malditos e Suave é a Noite, de 1934, esboçam as potências de engano e ilusão típicas deste amor fadado à desordem. Em O Grande Gatsby, porém, Scott Fitzgerald oferece uma dimensão ainda mais profunda ao sentimento, construindo uma imagem poderosa para a solidão que assombra seus heróis. Em vez de se esbaldar com os convidados no quintal, como tantos outros apaixonados da obra do autor, Gatsby apenas acompanha o movimento da sacada do quarto, solitário com sua taça de champanhe, à espera da hesitante Dayse, namorada de adolescência que lhe trocou pelo milionário Tom Buchanan. A própria ascensão social de Jay Gatsby curva-se ao romantismo da poética do autor: os acúmulos servem (sobretudo) para atrair sua borboleta do passado aos jardins luxuosos da mansão à beira-mar.

Por fim, Scott Fitzgerald não teria sido um dos nomes fundamentais da literatura ocidental se restringisse sua poética aos (estreitos) limites da apoteose do sonho americano. Sua principal inovação está justamente no destaque de certa ética trágica que costura a existência desregrada e intensa dos protagonistas. Um dos pioneiros na reconstrução, ficcional, da curva trágica entre as aspirações do deslumbre e as derrocadas inevitáveis, transforma melodia em agressão, perspectiva em desalento, horizonte em desencanto, sugerindo um mundo que tende sempre à aniquilação (dos sonhos, das esperanças, do sujeito).

Tema do conto Babilônia Revisitada, a derrocada dos heróis da era do jazz, que a tudo almeja e pouco alcança, é definitiva para a compreensão do projeto do escritor. Se o fracasso parece ser o único fim possível para o desperdício (de dinheiro, de afeto, de expectativa), a trajetória de Gatsby personifica como nenhuma outra a impossibilidade de permanência revelada pelo american dream. Gatsby não acaba esquecido ou louco, como seus irmãos não tão prósperos de Suave é a noite. Tampouco culmina em uma crise criativa, acumulando subfunções incompatíveis com o velho status, como o próprio Fitzgerald. Gatsby morre, assassinado.

Scott Fitzgerald mantém-se como uma das assinaturas mais potentes da literatura ocidental justamente pela monumentalidade do seu projeto artístico, no qual O Grande Gatsby ocupa lugar de destaque. A partir de uma linguagem poética e romântica, contrária aos padrões de então, sua obra reconstrói um frágil castelo de prosperidade, repleto de esperança, fortuna e promessas que se dissipam com os primeiros raios de sol, na ressaca da manhã seguinte.


* Jade Gandra Dutra Martins é pós-doutoranda em Teoria Literária
(publicado originalmente em DC Cultura, 05 de novembro de 2011)

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

feliz 2011 (parte 2)

Porque sala cheia é melhor ainda.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Pena de Ouro **

O maior dramaturgo brasileiro encontrou nas redações de jornais o farto material humano que serviu de matéria-prima para sua obra



POR JADE GANDRA DUTRA MARTINS

No ano de comemoração do centenário de nascimento de Nelson Rodrigues, uma série de exposições, homenagens, eventos e releituras amplia o debate sobre sua obra, atraindo fãs e especialistas. A vasta cobertura tenta contemplar os múltiplos papéis abarcados pelo autor na cultura brasileira do século XX: cronista, contista, romancista, crítico, dramaturgo. Constantemente associado às frases polêmicas e aos dramas rocambolescos sobre traição e desespero, seu legado mais popular, o escritor paira hoje como uma das personagens mais influentes do Brasil moderno. Uma faceta definidora da sua trajetória, porém, ainda segue menosprezada: o jornalista.

Nelson Rodrigues ainda nem sonhava em inventar o teatro brasileiro moderno quando concluiu, com um ponto de exclamação, sua primeira matéria como repórter profissional. Na verdade, jamais assistira a uma peça. Com 13 anos recém-completados, vestia calças curtas, devorava com ansiedade todos os folhetins que lhe caíam em mãos e cismava com o tamanho da própria cabeça – para ele, um cabeção. Pernambucano no registro de identidade, e carioca em todas as outras instâncias, recebeu o primeiro contracheque já na cidade maravilhosa, trabalhando para o pai Mário Rodrigues no jornal da família, o famoso A Manhã.

O matutino inaugurou a trajetória de superlativos que marcaria para sempre o clã dos Rodrigues: havia sido idealizado, concebido, montado e inaugurado em apenas 25 dias. Mário Rodrigues, um bom capitalista, intimou os filhos à labuta. À frente de todo o conteúdo político, local perfeito para alimentar debates intensos e controvérsias variadas, encaminhou Mário Filho à crítica de arte e dividiu a editoria de polícia entre Milton e Nelson. Roberto preferiu o nanquim, e se responsabilizou pelas ilustrações principais das edições. Confirmando a tendência hiperbólica daquela família de 14 filhos, em apenas um ano A Manhã já era o matutino mais vendido do país.

A política editorial era diversificada, atenta às preferências do público: além de publicar diariamente capítulos de romances famosos, como o clássico Crime e Castigo, de Dostoievski, formando uma geração de leitores, A Manhã priorizava matérias policiais, notas sobre suicídio e relatos de dramas passionais que impressionavam os corações sensíveis. Em uma época em que o ofício de jornalista servia como atalho legítimo – e lícito – para se alcançar status social (sim, essa época existiu), os principais periódicos do país descartavam a seriedade das reportagens investigativas ou políticas para mergulhar sem medo na narração de crimes sangrentos e pactos obscuros.

Descrevendo os casos mais chocantes daquele Rio de Janeiro repleto de bondes e piteiras, Nelsinho compensava a pouca experiência abusando de adjetivos poderosos e frases enfeitadas de lirismo. Não havia qualquer preocupação com a verdade, afinal de contas, naqueles tempos, objetividade era quase sempre um recurso exclusivo dos medíocres. Quem dominava de fato a máquina de escrever executava o ofício com o requinte do ficcionista que seleciona a palavra exata para expressar os sentimentos mais subterrâneos. E nas matérias policiais do menino repórter, os fatos eram sempre subordinados à escrita, jamais o contrário – dogma máximo do jornalismo pretensamente idôneo e asséptico que começaria a vigorar no Brasil a partir da segunda metade do século XX.

Era pobre e vivia uma vida miserável.
O ordenado que o emprego lhe proporcionava era insuficiente e não bastava para dar à pobre jovem o mínimo conforto. Sofria as mais pungentes necessidades. Vivia atormentada por cruéis privações.
Entretanto, como era forte e animosa, não se desesperava.
Nos momentos culminantes da desventura, procurava alívio na esperança florida duma vida melhor. Seu espírito era sadio e novo. Não se abatia. Pelo contrário. Quando a desdita golpeava-o, enchia-se de novas forças e da mais robusta mocidade. E as dores de tão habituais e comuns acabaram por revigorá-lo e enrijecê-lo.*

(A Manhã, 19/05/1928)

As primeiras linhas do currículo de Nelson Rodrigues foram preenchidas por três tipos de texto. As grandes matérias, que ocupavam uma página inteira, como o exemplo anterior, eram quase resenhas fantasiosas sobre crimes. Inventava-se muito: detalhes, cenas, pensamentos. O objetivo era arrebatar o leitor, jamais apenas informá-lo sobre os acontecimentos. As do segundo tipo limitavam-se a abordar, com economia, o tema noticiado, sem tecer relações mais profundas do que as já organizadas pelo repórter no ato da escrita. Por último, filé da época, as notas sobre suicídio. Acredite, todos os importantes veículos impressos mantinham então um espaço privilegiado para a exposição dos mais recentes suicídios, contrariando completamente o modelo atual, que pede silêncio, quando não omissão, no tratamento dessas situações.

Maluquices de sucesso


Quando Mário Rodrigues abandonou a casa e a prole no Recife aos cuidados da mulher Maria Esther, sozinha e desempregada, para procurar a sorte no Rio de Janeiro, nada menos do que a capital do Brasil, todo mundo achou que ele estava ficando louco. Pois em 1928, quando decidiu entregar A Manhã para Agripino Nazareth, deixando órfãos milhares de fãs encantados com os famosos textos inflamados do editor, todo mundo teve certeza de que ele estava, sim, completamente maluco.

A reviravolta surpreendente acabou se revelando o caminho mais adequado. Apenas seis meses depois do adeus, Mário Rodrigues fundou um novo jornal, A Crítica, novamente no Rio de Janeiro. Com talento para polemizar debates quentes da política, e cada vez mais ácido com os inúmeros inimigos, o vespertino alcançou a marca de 130 mil exemplares vendidos. E Mário Rodrigues era, novamente, o dono do jornal mais vendido do país, agora com uma nova estrela no currículo: a criação de um modelo renovador que ajudou a construir os tempos de ouro da imprensa brasileira.

A Crítica durou apenas dois anos, até ser empastelado no mesmo dia que Getúlio Vargas tomou a presidência do país, no golpe de estado de 1930. Em seu curto trajeto, porém, o vespertino acumulou feitos dignos de protagonista: solidificou o prestígio do dono, convincente no papel de maior jornalista do seu tempo; promoveu amplos debates sobre a política ditatorial do Brasil da época, expondo opiniões firmes que somente a mais imponente das teimosias seria capaz de produzir; amplificou o poder da crítica de arte, comentando as produções contemporâneas; engrandeceu a cobertura policial, apostando em um misto de literatura e humor, com histórias que encantavam até os leitores mais desconfiados. Como se não bastasse, A Crítica ainda inventou o jornalismo especializado em futebol, inaugurando a era das entrevistas com jogadores e compondo todo um vocabulário próprio, em voga até hoje (a expressão fla-flu, por exemplo, saiu de suas páginas).

A depredação da sede, fruto de rixas explicitadas em editoriais incendiários, liquidou não apenas A Crítica, mas também a última geração romântica da imprensa. A imagem de jornalistas heróis driblando brancos criativos em busca da máxima inspiração foi sendo pouco a pouco substituída pelos profissionais e seus cadernos de fontes exclusivas, para quem valioso mesmo é oferecer notícia em primeira mão, não estilo refinado. No auge desta transformação, os Rodrigues partem para O Globo, dirigido por Roberto Marinho, amigo da família, em 1931. É o primeiro passo para o menino Nelsinho transformar-se, definitivamente, em Nelson Rodrigues.

Nasce um autor

Nelson Rodrigues permaneceu no jornal O Globo durante uma década. É lá que dá seus primeiros passos na cobertura esportiva, elaborando perfis literários com os gigantes da bola, e aprimora a redação das já clássicas matérias policiais, agora um tantinho (só um tantinho) mais econômicas em devaneios e invenções. Já adulto, o jornalista começa a burilar seu estilo, compondo um arsenal de referências que seriam para sempre marcas registradas de sua poética – no teatro, nos contos, nas crônicas, nos folhetins e na vida.

O amor não tem lógica. Escolhida a mulher que lhe faça vibrar o teclado dos nervos, o homem é um autômato e o mundo fica pequeno se lhe falta o convívio caricioso daquela de vago encanto que é a mulher escolhida pelo passional.
Então, a morte é o último apelo.
O amante, de uma união legalizada pelos códigos, ou simplesmente pelo pacto das almas, sempre indissolúveis, procura o último sono como recurso extremo do seu coração agitado, mas não deixa o objeto do seu deslumbramento para a delícia dos outros homens, que ele passa a odiar coletivamente, sem compreender, em seu delírio, a teoria dos filósofos simplistas, que afirmam existirem muitas mulheres, e que todas as mulheres são iguais.*

(O Globo, 12/08/1931)

A reportagem “Eu não disse que havíamos de morrer juntos?” mais parece um ensaio, se comparada ao padrão seco do jornalismo atual. Mas o estilo que Nelson Rodrigues desenvolve nessas folhas policiais é exclusivo, intenso e cheio de particularidades, como as paixões que narrou em seu teatro (atraindo e repelindo o público, na mesma medida). Investe pesado nos adjetivos, característica já da sua escrita de menino; pontua com exclamações e reticências, rejeitando qualquer precaução; tematiza a dor do amor e o desespero da aflição, cantando às almas doentes, de excesso ou de falta; repete as mesmas metáforas de forma obsessiva e contumaz, afinal se assumia, ele próprio, “flor de obsessão”. Não demorou muito para que sua autoria, já identificada por milhares de leitores, atraísse uma nova peripécia, digna de folhetim.

Em O Globo, transformou-se no coringa da redação, escrevendo desde críticas de óperas até histórias infantis – às vezes ainda se passava por tradutor, para garantir um trocado extra. A alta exposição apresentou Nelson Rodrigues ao grupo de intelectuais e artistas da zona sul carioca, onde acumulou algumas polêmicas e muitos amigos famosos. Um deles reconheceu de imediato o seu potencial extraordinário como autor: era Samuel Weiner, jornalista de grande influência na época, getulista de carteirinha e coração. Sem perder tempo, convidou o repórter para compor a equipe daquele que viria a ser o jornal mais moderno até então, o lendário Última Hora.

Nelson Rodrigues já era um dramaturgo controverso, acusado, ao mesmo tempo, de pai do teatro brasileiro moderno e insuperável tarado da dramaturgia nacional. A instável trajetória no tablado rendeu inúmeros textos censurados e, claro, nenhuma moeda no bolso. Sempre acossado pelo imperativo do dinheiro, já que sustentava parte da família Rodrigues após a morte do patriarca – e dinheiro não era o problema para Weiner, famoso por oferecer salários muito acima do mercado –, aceitou a proposta, com o aval do próprio Roberto Marinho, concorrente do novo jornal (em negócios e ideologia), e assinou contrato em 1951.

Se o convite era irrecusável, o projeto pensado por Weiner conseguia ser mais rodrigueano do que o próprio Nelson Rodrigues: uma coluna diária, misto de crônica e conto, baseada em alguma reportagem do jornal, de preferência da editoria policial. Iria se chamar “Atire a primeira pedra”, ideia do chefe, logo refutada pelo autor: por que não “A vida como ela é...”? Ninguém recusou. Como Nelson Rodrigues já era um ficcionista, afinal escrevia teatro e começara a publicar folhetins, a ordem de se inspirar em fatos reais só seria acatada da primeira vez. A partir do segundo texto, seria tudo criação. A mais legítima criação rodrigueana.

“A vida como ela é...”, com reticências mesmo, como convinha à tradição hiperbólica, encantou os leitores desde a primeira maiúscula. Em qualquer bonde em circulação no Rio de Janeiro era possível encontrar passageiros deliciados com as artimanhas da seção. Alguns em lágrimas, outros às gargalhadas. A coluna virou mania nacional, rendendo fama ao autor e suscitando debates em mesas de bar, estádios de futebol, almoços em família, passeios no parque e tardes na praia. Uma combinação rara de ingredientes revela o segredo do sucesso: enredos bombásticos, protagonizados por adúlteros em chamas, quase sempre mulheres; linguagem inovadora, que aposta em simplicidade e coloquialismo sem perder a sofisticação.

As 2 mil colunas, publicadas ao longo de dez anos, são um caldeirão de estilo. Suas frases de efeito conquistaram o público de imediato, sempre pontuadas por exclamações e exageros típicos das paixões desenfreadas. Suas expressões, repetidas ao infinito, reproduziam com graça o linguajar das ruas, e suas personagens se debatiam entre um e outro “bye, bye”, “assim assim”, “batata” e tantos mais. Ainda havia aqueles nomes tão característicos: Gusmão, Glorinha, Palhares, Doutor Borborema – mais tipos do que personagens, até hoje associados à obra do autor. Para completar, vez ou outra o cronista acionava os genes do pai, bradando polêmicas morais (“Nem toda mulher gosta de apanhar, apenas as normais”), políticas (“O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”) e culturais (“Os jovens têm todos os defeitos dos adultos e mais um, a imaturidade”).

Nelson Rodrigues está inteiramente ali: nas mulheres devassas que se entregam ao primeiro desconhecido da esquina; nas vizinhas moralistas sempre à espera do pecado alheio; nas tramas repletas de surpresas, reviravoltas e golpes do destino; na construção criativa e debochada do carioca way of life, uma invenção sua, afinal de contas; na magnitude oferecida ao trivial, movimento pioneiro da ficção brasileira. “A vida como ela é...”, inspirada nas matérias policiais que escreveu desde menino, mudou sua vida profissional, tornou-o um autor consagrado, invadiu seu teatro, ganhou as ruas. E ensinou a nós, brasileiros de carteirinha como ele, que espiar pelo buraco da fechadura é sempre mais gostoso.

* Trechos retirados do livro O baú de Nelson Rodrigues: Os primeiros anos de crítica e reportagem (1928-35), editora Companhia das Letras, 301 páginas.

** Artigo publicado na Revista Lounge deste mês (jul-ago 2011).

sábado, 25 de junho de 2011

Desconstruindo Woody Allen *


* versão do autor

Obra do diretor norte-americano sugere três leituras distintas sobre as aventuras e as paranóias da civilização moderna

Com mais de 40 filmes no currículo, Woody Allen firma-se como uma das mais potentes assinaturas do cinema contemporâneo. Disputado por artistas de renome e com uma coleção de medalhas cults e sucessos de alcance popular, ancora sua poética no debate de dores e aspirações típicas da modernidade. Observada a partir da sua mais recente obra, Meia Noite em Paris (em cartaz nos cinemas do estado), a autoria do roteirista, diretor e ator norte-americano insinua a construção de três grandes palcos para a experiência humana.

O primeiro, presente ao longo de sua trajetória, enfatiza o caráter trágico de situações comuns à atualidade (ainda que desconfortáveis), impondo escolhas extremas e definitivas, que transformam a vida dos (anti-) heróis, expulsando-os da zona de conforto. É o caso de Crimes e Pecados (1989), que conta o drama do médico Judah Rosenthal, disposto a assassinar a amante para livrar sua reputação de interferências negativas. O mal-estar retorna em Match Point (2005), microcosmo do seu "cinema de dilema", no qual o protagonista Chris Wilton vive um pesadelo à Dostoiévski após se envolver com uma aspirante a atriz.

Quando se afasta do trágico, Allen ergue um outro universo, excêntrico agora, que remete à maneira libertária como o espanhol Pedro Almodóvar encara a realidade. Segue, então, o caminho inverso: abandona a tragificação do cotidiano, naturalizando as situações mais exóticas, simplificando descaminhos (aparentemente) chocantes, amplificando o mínimo detalhe que transforma desvio em imperativo. É este Woody Allen subversivo que aparece, por exemplo, em Vicky, Cristina, Barcelona (2008), palco de inusitadas escolhas sociais.

Em ambos os casos, desenvolve uma discussão ética: em última instância, o modo como adaptamos (ou não) nossas buscas e aspirações à sociedade. O que difere um universo do outro é a naturalidade com que suas personagens mais livres sobrevivem aos próprios dilemas e erros. E é justamente esse imperativo (trágico) da decisão que Woody Allen abandona em sua terceira abordagem, revivida em Meia Noite em Paris.

Focado no cômico latente da experiência humana, seu terceiro palco reúne personagens neuróticas e deslocadas, apaixonadas por remédios e fóbicas da vida, e conquistou a intimidade (e as gargalhadas) da plateia. É a maior fase da obra do autor, quantitativamente, rendendo comédias espirituosas que marcaram época, como Bananas (1971), Annie Hall (1977) e Desconstruindo Harry (1997).

Embora tenha fundamentado a carreira do diretor ao longo dos anos, comediante desde os primeiros passos, a ênfase no cômico já não parece capaz de acrescentar grandes feitos à sua obra. Contando a história de um romancista inédito que sonha em viver na década de 20, cenário dos seus ídolos Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Cole Porter, Woody Allen retoma a abordagem superficial, os clichês previsíveis e as lições de moral (cada vez mais explícitas) de dois dos seus filmes mais insossos, Scoop (2006) e O Escorpião de Jade (2001). Repleto de referências, rasas para os conhecedores e obscuras para os desavisados, Meia Noite em Paris constrói uma década de 1920 caricata, com pinceladas apressadas que muitas vezes apenas ratificam certa mitologia, bastante desgastada, sobre os heróis da década perdida.

Jade Gandra Dutra Martins é professora convidada do curso de cinema da UFSC

(texto publicado originalmente no DC Cultura, 25/06/2011)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

(re) conexão *

porque viver de verdade é sempre ao vivo. aiai.

* Por Jonathan Franzen (trad. Augusto Calil, publicado no Caderno Link).

"Falando numa perspectiva mais geral, o objetivo definitivo da tecnologia, a teleologia da techné, é substituir um mundo natural indiferente a nossos desejos – um mundo de furacões e dificuldades e corações partíveis, um mundo de resistência – por outro mundo que responda tão bem a nossos desejos a ponto de ser, com efeito, uma mera extensão do ser. Permita-me sugerir, finalmente, que o mundo do tecnoconsumismo é, portanto, incomodado pelo amor verdadeiro, restando-lhe como única escolha responder perturbando o amor.
(...)
Um fenômeno relacionado a esse é a transformação do verbo “curtir” (“like”, em inglês) que, graças ao Facebook, deixa de ser um estado de espírito e passa a ser um ato que desempenhamos com o mouse – deixa de ser um sentimento para virar uma opção de consumo. E curtir é, no geral, o substituto que a cultura comercial oferece para o ato de amar. A característica mais notável de todos os produtos de consumo – e principalmente dos dispositivos eletrônicos e aplicativos – é o fato de terem sido projetados para serem imensamente curtíveis. Esta é, na verdade, a definição de um produto de consumo, em contraste com o produto que é apenas aquilo que é e cujos fabricantes não estão concentrados na possibilidade de o curtirmos ou não.
(...)
O simples fato é que a tentativa de ser perfeitamente curtível é incompatível com os relacionamentos amorosos. Mais cedo ou mais tarde, por exemplo, você se verá numa briga horrível, aos berros, e ouvirá saindo de sua boca palavras que você mesmo não curte nem um pouco, coisas que estilhaçam sua autoimagem de pessoa justa, gentil, bacana, atraente, controlada, divertida e curtível. Alguma coisa mais real do que a curtibilidade surgiu de você e de repente você se vê levando uma vida real.
(...)
Subitamente existe uma escolha de verdade a ser feita – não uma falsa escolha de consumidor entre BlackBerry e iPhone, e sim uma pergunta: Será que eu amo esta pessoa? E, para o outro, será que esta pessoa me ama?Não existe a possibilidade de curtir cada partícula da personalidade de uma pessoa real. É por isso que um mundo de curtição acaba se revelando uma mentira. Mas é possível pensar na ideia de amar cada partícula de uma determinada pessoa. E é por isso que o amor representa tamanha ameaça existencial à ordem tecnoconsumista: ele denuncia a mentira.
Isso não equivale a dizer que o amor envolve apenas as brigas. O amor é questão de empatia ilimitada, nascida de uma revelação feita pelo coração mostrando que outra pessoa é tão real quanto você. E é por isso que o amor, ao menos no meu entendimento, é sempre específico. Tentar amar a toda a humanidade pode ser um empreendimento digno, mas, de um jeito engraçado, isso mantém o foco no eu, no bem estar moral ou espiritual do eu. Ao passo que, para amar uma pessoa específica e identificar-se com as lutas dela como se fossem as suas, é preciso abrir mão de parte de si.
Neste caso, o grande risco envolvido é, sem dúvida, a rejeição. Todos nós podemos suportar momentos em que não somos curtidos, pois existe uma gama virtualmente infinita de curtidores em potencial. Mas expor a totalidade do seu eu, e não apenas a superfície curtível, e com isto ser rejeitado, é algo que pode se revelar insuportavelmente doloroso. A perspectiva geral da dor, a dor da perda, da separação, da morte, é o que torna tão tentadora a ideia de evitar o amor e permanecer em segurança no mundo do curtir.
Ainda assim, a dor machuca, mas não mata. Quando levamos em consideração a alternativa – um sonho anestesiado de autossuficiência, incentivado e aprovado pela tecnologia – a dor emerge como produto natural e indicador natural de que estamos vivos num mundo resistente. Levar uma vida indolor equivale a não viver. Até dizer a si mesmo, “Ah, vou deixar para depois esta história de amor e de dor, talvez para depois dos 30 anos” é como resignar-se a passar 10 anos simplesmente ocupando espaço no planeta e consumindo seus recursos. Resignar-se a ser um consumidor (palavra que emprego no seu sentido mais pejorativo).
(...)

"Curtir é covardia", na íntegra, aqui.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

despertando

"O rapaz continuou a narração: ele compreendeu de imediato a rasteira do destino; ela demorou, demora ainda. As pistas da exclusividade já haviam sido fornecidas, inclusive, em outras ocasiões, algumas nem tão agradáveis. Se um dia ele se casasse, lembrou a famosa frase, se um dia abraçasse aquele ato impraticável, e riu, seria apenas com ela, Nina – e ele sabia desde menino. Se alguém ainda pudesse arrancá-la daquela dor e daquele peso, só podia ser ele, Tom - e ela ainda custava a aceitar a oferta. Mesmo tendo dinamitado o futuro duvidando dos antigos acertos do amor, e acreditando naquela sucessão de erros fantasiados de poesia, ainda assim a vida esticara o pé e pimba. Mais maduros, jamais repetiriam o mesmo erro. Porque a vida sempre seria maior, superior a todas as falsas razões; porque o tempo trabalha a favor dos fortes, os raros que torcem e vibram e lutam de verdade, os únicos capazes de desprezar as miudezas, donos de almas que transbordam. Já pisavam a primeira primavera só de margaridas. E logo reduziriam, enfim, aquela penca de achismos, dela e dele, a minúsculos vermes rastejando diante do resto gigante. O resto gigante, maravilhoso, estapafúrdio; o supérfluo indispensável. Porque tentar minar aquele amor era uma luta de formigas e elefantes, e eles eram os elefantes. Porque, pela primeira vez, ele não tinha mais medo algum da esperança. Porque ninguém, absolutamente ninguém, atravessa sete anos, onze meses e 23 dias com uma dor no coração sem procurar a cura no lugar certo."


(velhas letrinhas em...)

terça-feira, 7 de junho de 2011

''A obra de arte tem de ser imperfeita'' *

* Por Arnaldo Jabor

Outro dia, o Nelson Rodrigues baixou em mim. De vez em quando, eu o psicografo. É impressionante como escrevo rápido quando o espírito de Nelson me toma. Escrevo com a liberdade de não ser "eu". Talvez seja por isso que F. Pessoa inventou heterônimos para se sentir livre da cangalha do "eu".
Muitos jovens me perguntam: "Afinal, quem foi o Nelson?"
Não sabem direito. Ficou apenas a vaga lenda de "pornográfico" ou até de "fascista" por ter puxado o saco do ditador Médici (lembram?) para tirar seu filho da prisão. Não conseguiu, mas ganhou a pecha "de direita" por ter criticado futuros mensaleiros e pelegos, os "marxistas de galinheiro", como ele os chamava, pois intuiu claramente, na época, que a ideologia que "absolve e justifica os canalhas" era apenas o ópio dos intelectuais.
Eu mesmo sofri por causa dele. Em 1973, ousei filmar Toda Nudez Será Castigada e dei uma entrevista na Veja em que dizia que "fascismo é amplo: existe fascista de direita e de esquerda também". Pra quê? Os patrulheiros ideológicos mandaram um manifesto ao Jornal do Brasil, onde me esculhambavam indiretamente, dizendo que o sucesso imenso que o filme fazia "não era a missão política do cinema novo". Foi das grandes dores que senti, pois até amigos assinaram o maldito texto, que só não foi publicado porque, um dia antes, os generais tiraram o filme de cartaz, com soldados de metralhadora, levando as cópias dos cinemas porque, dizia o chefe da Censura: "Ele faz apologia do homossexualismo..."
Aí, meus "amigos" comunas desistiram do texto "para não dar razão ao inimigo principal", que era a ditadura. Eu e Nelson éramos "inimigos secundários", para usar a língua de Mao Tsé-tung. Isso é verdade e nunca contei aqui. Doeu, mas já passou.
Aí, o filme voltou a cartaz porque ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim; os generais ficaram com medo da repercussão internacional (imensa) e liberaram meu filme, baseado numa peça do "fascista pornô". Mas a importância de Nelson continua subestimada.
Hoje, a "pornopolítica" tomou conta de tudo e Nelson é que tem fama de "pornográfico" - logo quem: um moralista que corava diante de um palavrão. Nelson é muito mais. Filho do jornalismo policial, formado nas delegacias sórdidas, vendo cadáveres de negros plásticos, metido no cotidiano "marrom" do jornal do pai, Nelson flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa cara, e que ninguém via.
Consideram-no o maior dramaturgo do País, sem dúvida, mas não o colocam no pódio da literatura culta, ao lado de gente como Guimarães Rosa, por exemplo, que o irritava muito: "Jabor, diga-me pelo amor de Deus, qual a profundidade da frase "Viver é muito perigoso"?" Ou: "A gente morre para provar que viveu...?" Nelson implicava com a pose do Rosa.
Uma vez, ele me disse ao telefone que o "problema da literatura nacional é que nenhum escritor sabe bater um escanteio". É luminoso.
Outra vez, ele falou: "Se Deus me perguntar se eu fiz alguma coisa que preste na vida, eu responderei a Deus: "Sim, Senhor, eu inventei o óbvio!""
Sua literatura nos ensina o óbvio e isto é muito profundo numa literatura eivada de engajamentos "corretos" ou de intenções formais rocambolescas. Gilberto Freyre sacou sua "superficialidade profunda", assim como André Maurois entendeu que a genialidade de Proust era justamente "a épica das irrelevâncias..." E isto é muito saudável, num país onde ninguém escreve um bilhete sem buscar a eternidade. Nelson é um escritor contemporâneo.
Até hoje, muita gente não entendeu que sua grandeza está justamente na sincronia com os detritos do cotidiano. A faxina que Nelson fez na prosa é semelhante à que João Cabral fez na poesia.
Nelson baniu as metáforas a pontapés "como ratazanas grávidas" e criou o que podemos chamar de antimetáforas feitas de banalidades condensadas. Suas comparações sempre nos remetem a um "mais concreto". Shakespeare tinha isso, Cervantes, também. E algumas crônicas de Nelson são superiores a muitas peças.
Suas frases famosas jamais aspiravam ao "sublime": "o torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado", "a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil", "em seu ódio ele dava arrancos de cachorro atropelado", "seu peito se encheu de heroísmo como anúncio de fortificante", "a bola seguia Didi com a fidelidade de uma cadelinha ao seu dono", "a virtude é bonita, mas exala um tédio homicida; não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera", "o sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura", "somos uns Narcisos às avessas que cuspimos na própria imagem".
Ele me dava lições de arte e literatura: "Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. A partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão elitista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões. E aí vem a grande verdade: "A obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita". Isso. Contemporâneo e minimalista, via, como Oswald, que a poesia está nos fatos, no vatapá no outro e na dança - "o que estraga a obra de arte é a unidade".
A lição política de Nelson é: o Brasil não se salvará com planos messiânicos ou ideias gerais de "epopeias de Cecil B. de Mille", sejam elas epopeias operárias ou epopeias neoliberais.
Nelson, sem cultura política nenhuma, profetizou que os atos "indutivos", as providências parciais eram muito mais importantes que generalidades utópicas e "dedutivas". O "óbvio ululante" é limpar a casa e cuidar do detalhe, do enxugamento do Estado, "chupando a carótida dos chefes das estatais como tangerinas" quando se mostrarem ladrões ou favorecendo correligionários, como vemos todo dia.
Nossa opinião pública está muito mais informada hoje, mas ainda é precária e desinformada. Como ele dizia: "Consciência social de brasileiro é medo da polícia". Até hoje.


(Publicado em O Estado de São Paulo, 07/06/2011)