Obra-prima do norte-americano F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby chega ao mercado em nova tradução e reabre interesse na obra do autor
Scott Fitzgerald saboreava o auge do seu próprio american dream quando entregou ao mundo a história do ambíguo milionário Jay Gatsby. Contista renomado e já autor de dois romances que venderam mais de 60 mil exemplares, número espantoso para a época, desenvolveu uma poética ambivalente como a trajetória dos heróis da década perdida. Na contracorrente de seus contemporâneos, conseguiu estabelecer um projeto de ficção que mesclava, paradoxalmente, temática atenta ao zeitgest borbulhante dos anos 1920 e desprezo pelas modas literárias de então, com investimento autêntico no romantismo do estilo e do olhar.
Relançado com nova tradução, O Grande Gatsby (Companhia das Letras, trad. Vanessa Barbara, 256 páginas) pode ser considerado o ápice da carreira do escritor de Minnesota. O romance, de 1925, reconstrói uma experiência social típica do período, a busca desesperada e encantadora por um lugar ao sol na nação das promessas, ao mesmo tempo que se firma como o ponto alto da literatura do autor. O drama de Jay Gatsby condensa os principais traços da assinatura de Fitzgerald, esboçada desde sua atuação como contista em revistas como Esquire e Vanity Fair: a tematização do sonho americano, vivido sempre à revelia do bom senso; o estilo afetado, último suspiro da prosa romântica; a ética trágica, que dota as personagens de intenso poder de autoaniquilação, aprofundando ainda mais o enredo.
A existência cintilante de Jay Gatsby, um self-made man, chega até o leitor através do seu vizinho, o narrador Nick Carraway, simplório corretor de títulos. Sua fortuna, supostamente originária do tráfico de bebidas durante a lei seca, é vítima de fofocas por todo o país. Gatsby, porém, não se importa. A escalada social ilícita permitiu-lhe usufruir de uma realidade que parecia vetada quando ainda se chamava (apenas) James Gatz. E é graças a ela que organiza suas festas na mansão, por onde desfilam os hits do momento, como os cabelos à la garçon, o jazz dançante e o sexo relativamente livre, protagonizados por heróis que enriqueceram tão subitamente quanto despencarão na miséria (com a crise da bolsa de valores, em 1929).
Atento ao espírito do seu tempo, Scott Fitzgerald oferece ao leitor a sua própria versão de um mundo dilacerado entre esperança econômica e fracasso pessoal, construindo uma geração faminta, que consome (a vida) até a última gota. Assim era Amory Blane, o protagonista endinheirado de Este Lado do Paraíso, de 1920, em busca da sua fatia da terra prometida. A mesma existência regada a álcool e investimentos ousados foi compartilhada pelo herdeiro Anthony Patch e sua bela Gloria, em Belos e Malditos, de 1922. O projeto é consolidado em O Grande Gatsby, onde o autor desnuda uma constelação de mulheres fúteis e executivos sem função, rasgando notas e brindando até o amanhecer na mansão de origem duvidosa.
Enquanto oferece uma versão adorável e consistente daquela geração, Fitzgerald afasta-se do presente ao apostar em um estilo afetado, marcado por frases longas, referências pop e adjetivos cheios de pompa. Rival de Ernest Hemingway, com quem dividia polêmicas literárias, desenvolveu, propositadamente, uma prosa bastante diversa da poética do premiado autor de O Velho e o Mar, caracterizada pela economia de adjetivos e descrições. Desde seus primeiros contos, publicados quando ainda estava na casa dos vinte, Fitzgerald reivindicou o epíteto de último expoente romântico, apelando tanto para a escrita poética quanto para o relato de histórias de amor quase sempre impossíveis e insuperáveis.
Submersos em uma combinação de desamparo e desatino, os casais de Belos e Malditos e Suave é a Noite, de 1934, esboçam as potências de engano e ilusão típicas deste amor fadado à desordem. Em O Grande Gatsby, porém, Scott Fitzgerald oferece uma dimensão ainda mais profunda ao sentimento, construindo uma imagem poderosa para a solidão que assombra seus heróis. Em vez de se esbaldar com os convidados no quintal, como tantos outros apaixonados da obra do autor, Gatsby apenas acompanha o movimento da sacada do quarto, solitário com sua taça de champanhe, à espera da hesitante Dayse, namorada de adolescência que lhe trocou pelo milionário Tom Buchanan. A própria ascensão social de Jay Gatsby curva-se ao romantismo da poética do autor: os acúmulos servem (sobretudo) para atrair sua borboleta do passado aos jardins luxuosos da mansão à beira-mar.
Por fim, Scott Fitzgerald não teria sido um dos nomes fundamentais da literatura ocidental se restringisse sua poética aos (estreitos) limites da apoteose do sonho americano. Sua principal inovação está justamente no destaque de certa ética trágica que costura a existência desregrada e intensa dos protagonistas. Um dos pioneiros na reconstrução, ficcional, da curva trágica entre as aspirações do deslumbre e as derrocadas inevitáveis, transforma melodia em agressão, perspectiva em desalento, horizonte em desencanto, sugerindo um mundo que tende sempre à aniquilação (dos sonhos, das esperanças, do sujeito).
Tema do conto Babilônia Revisitada, a derrocada dos heróis da era do jazz, que a tudo almeja e pouco alcança, é definitiva para a compreensão do projeto do escritor. Se o fracasso parece ser o único fim possível para o desperdício (de dinheiro, de afeto, de expectativa), a trajetória de Gatsby personifica como nenhuma outra a impossibilidade de permanência revelada pelo american dream. Gatsby não acaba esquecido ou louco, como seus irmãos não tão prósperos de Suave é a noite. Tampouco culmina em uma crise criativa, acumulando subfunções incompatíveis com o velho status, como o próprio Fitzgerald. Gatsby morre, assassinado.
Scott Fitzgerald mantém-se como uma das assinaturas mais potentes da literatura ocidental justamente pela monumentalidade do seu projeto artístico, no qual O Grande Gatsby ocupa lugar de destaque. A partir de uma linguagem poética e romântica, contrária aos padrões de então, sua obra reconstrói um frágil castelo de prosperidade, repleto de esperança, fortuna e promessas que se dissipam com os primeiros raios de sol, na ressaca da manhã seguinte.
Relançado com nova tradução, O Grande Gatsby (Companhia das Letras, trad. Vanessa Barbara, 256 páginas) pode ser considerado o ápice da carreira do escritor de Minnesota. O romance, de 1925, reconstrói uma experiência social típica do período, a busca desesperada e encantadora por um lugar ao sol na nação das promessas, ao mesmo tempo que se firma como o ponto alto da literatura do autor. O drama de Jay Gatsby condensa os principais traços da assinatura de Fitzgerald, esboçada desde sua atuação como contista em revistas como Esquire e Vanity Fair: a tematização do sonho americano, vivido sempre à revelia do bom senso; o estilo afetado, último suspiro da prosa romântica; a ética trágica, que dota as personagens de intenso poder de autoaniquilação, aprofundando ainda mais o enredo.
A existência cintilante de Jay Gatsby, um self-made man, chega até o leitor através do seu vizinho, o narrador Nick Carraway, simplório corretor de títulos. Sua fortuna, supostamente originária do tráfico de bebidas durante a lei seca, é vítima de fofocas por todo o país. Gatsby, porém, não se importa. A escalada social ilícita permitiu-lhe usufruir de uma realidade que parecia vetada quando ainda se chamava (apenas) James Gatz. E é graças a ela que organiza suas festas na mansão, por onde desfilam os hits do momento, como os cabelos à la garçon, o jazz dançante e o sexo relativamente livre, protagonizados por heróis que enriqueceram tão subitamente quanto despencarão na miséria (com a crise da bolsa de valores, em 1929).
Atento ao espírito do seu tempo, Scott Fitzgerald oferece ao leitor a sua própria versão de um mundo dilacerado entre esperança econômica e fracasso pessoal, construindo uma geração faminta, que consome (a vida) até a última gota. Assim era Amory Blane, o protagonista endinheirado de Este Lado do Paraíso, de 1920, em busca da sua fatia da terra prometida. A mesma existência regada a álcool e investimentos ousados foi compartilhada pelo herdeiro Anthony Patch e sua bela Gloria, em Belos e Malditos, de 1922. O projeto é consolidado em O Grande Gatsby, onde o autor desnuda uma constelação de mulheres fúteis e executivos sem função, rasgando notas e brindando até o amanhecer na mansão de origem duvidosa.
Enquanto oferece uma versão adorável e consistente daquela geração, Fitzgerald afasta-se do presente ao apostar em um estilo afetado, marcado por frases longas, referências pop e adjetivos cheios de pompa. Rival de Ernest Hemingway, com quem dividia polêmicas literárias, desenvolveu, propositadamente, uma prosa bastante diversa da poética do premiado autor de O Velho e o Mar, caracterizada pela economia de adjetivos e descrições. Desde seus primeiros contos, publicados quando ainda estava na casa dos vinte, Fitzgerald reivindicou o epíteto de último expoente romântico, apelando tanto para a escrita poética quanto para o relato de histórias de amor quase sempre impossíveis e insuperáveis.
Submersos em uma combinação de desamparo e desatino, os casais de Belos e Malditos e Suave é a Noite, de 1934, esboçam as potências de engano e ilusão típicas deste amor fadado à desordem. Em O Grande Gatsby, porém, Scott Fitzgerald oferece uma dimensão ainda mais profunda ao sentimento, construindo uma imagem poderosa para a solidão que assombra seus heróis. Em vez de se esbaldar com os convidados no quintal, como tantos outros apaixonados da obra do autor, Gatsby apenas acompanha o movimento da sacada do quarto, solitário com sua taça de champanhe, à espera da hesitante Dayse, namorada de adolescência que lhe trocou pelo milionário Tom Buchanan. A própria ascensão social de Jay Gatsby curva-se ao romantismo da poética do autor: os acúmulos servem (sobretudo) para atrair sua borboleta do passado aos jardins luxuosos da mansão à beira-mar.
Por fim, Scott Fitzgerald não teria sido um dos nomes fundamentais da literatura ocidental se restringisse sua poética aos (estreitos) limites da apoteose do sonho americano. Sua principal inovação está justamente no destaque de certa ética trágica que costura a existência desregrada e intensa dos protagonistas. Um dos pioneiros na reconstrução, ficcional, da curva trágica entre as aspirações do deslumbre e as derrocadas inevitáveis, transforma melodia em agressão, perspectiva em desalento, horizonte em desencanto, sugerindo um mundo que tende sempre à aniquilação (dos sonhos, das esperanças, do sujeito).
Tema do conto Babilônia Revisitada, a derrocada dos heróis da era do jazz, que a tudo almeja e pouco alcança, é definitiva para a compreensão do projeto do escritor. Se o fracasso parece ser o único fim possível para o desperdício (de dinheiro, de afeto, de expectativa), a trajetória de Gatsby personifica como nenhuma outra a impossibilidade de permanência revelada pelo american dream. Gatsby não acaba esquecido ou louco, como seus irmãos não tão prósperos de Suave é a noite. Tampouco culmina em uma crise criativa, acumulando subfunções incompatíveis com o velho status, como o próprio Fitzgerald. Gatsby morre, assassinado.
Scott Fitzgerald mantém-se como uma das assinaturas mais potentes da literatura ocidental justamente pela monumentalidade do seu projeto artístico, no qual O Grande Gatsby ocupa lugar de destaque. A partir de uma linguagem poética e romântica, contrária aos padrões de então, sua obra reconstrói um frágil castelo de prosperidade, repleto de esperança, fortuna e promessas que se dissipam com os primeiros raios de sol, na ressaca da manhã seguinte.
* Jade Gandra Dutra Martins é pós-doutoranda em Teoria Literária
(publicado originalmente em DC Cultura, 05 de novembro de 2011)